A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sexta-feira, agosto 20, 2004

Os Americanos

Nos tempos que correm, não existe acusação mais banalizada, na nossa imprensa, do que a de antiamericanismo. Ela dirige-se, por igual, a todos os que não veneram os Estados Unidos da América ou a todos os que, admirando a América, não dispensam um olhar mais atento e crítico sobre os seus feitos e defeitos. E parte daqueles que descobriram uma recente e irresistível vocação para uma admiração acrítica pelos americanos que, frequentemente, revela nada mais do que um pensamento indigente e subserviente, na simultânea arrogância e ignorância que revela. São dignos de dó: nem sequer sabem que os americanos têm tão-pouco respeito pelos seus lambe-botas quanto o têm pelos seus inimigos declarados. No que de melhor têm, os americanos respeitam sim os que são capazes de elogiar as suas qualidades e não deixarem, por isso mesmo, passar em claro os seus abusos. Têm, por exemplo, mais respeito pelos que lhes dizem na cara que a situação dos presos de Guantanamo é intolerável num Estado de direito e numa democracia, do que o têm por políticos como Durão Barroso, cujo perfil de subserviência militante ficou penosamente retratado nas imagens da triste Cimeira das Lajes - a cimeira da propaganda e da mentira.
Existem várias Américas, o que torna a acusação de antiamericanismo estúpida em si mesma. A América de George Walker Bush é apenas a face de uma América, hoje porventura maioritária, mas jamais fundível ou representativa dos valores que formaram o carácter e fizeram a história da grande nação americana. Bush é apenas um servidor dos profetas da extrema-direita americana, que acreditam que a América é o modelo universal e definitivo das virtudes políticas e morais a quem Deus cometeu o encargo de exportar a sua doutrina, pela força se necessário, através do mundo inteiro. Por isso, tudo o que surja no caminho que possa contrariar a afirmação da força liderante da América deve ser extirpado, como um mal absoluto. Não apenas os inimigos ou concorrentes externos, mas também os obstáculos internos: devem ser apoiados os ricos que criam riqueza e não os pobres que só aspiram a viver parasitariamente dum sistema de segurança social semelhante ao que os europeus construíram; devem ser afastadas - recorrendo à sistemática falsificação de dados científicos em relatórios oficiais - todas as limitações de carácter ambiental, que mais não são do que um entrave ao desenvolvimento da indústria e à prosperidade das empresas; e não deve ser tolerado o que se entende por vícios, que ofendem a moral pública dominante, mesmo se praticados longe do olhar e do conhecimento alheio, mesmo se praticados pelo próprio Presidente, na intimidade do seu escritório privado na Casa Branca - desde que o Presidente seja democrata e não comungue destes valores.
Os que se preocupam com a América não se preocupam apenas com a deturpação progressiva dos valores de referência da América, substituídos por um católogo de supostas verdades e virtudes que, se olharem com atenção, em nada difere do catolicismo salazarista: há sempre, nestes cíclicos regressos aos "bons velhos valores", qualquer coisa de bafiento e sinistro. Os que se preocupam com a América não podem também deixar de se preocupar com o facto de o executor destas políticas ser o sr. George Walker Bush. Porque a América é o país liderante, a única superpotência restante e, como tal, o mundo não pode deixar de olhar com apreensão uma América dirigida por um presidente notoriamente inculto e ignorante, incapaz de compreender ou de se interessar por qualquer coisa para além dos dogmas básicos de vida em que acredita qualquer camionista do "cowboy country", mas capaz, inversamente, de mentir sem remorsos para salvaguardar as verdades que apregoa. Como faz em relação ao ambiente, como faz em relação às questões sociais, como fez em relação ao Iraque. A ignorância e a má-fé dos grandes são um perigo em si mesmas. Não saber onde fica a Croácia ou que o Brasil tem pretos é preocupante para quem lidera o mundo; saber que o Iraque não tem armas de destruição maciça e mentir deliberadamente sobre isso para justificar uma guerra de conquista não é apenas imoral, é perigoso, como se está ver e como melhor ainda se irá ver no futuro.
Num artigo ontem aqui escrito, Pacheco Pereira reflectia sobre a inegável impreparação revelada pelos americanos para o pós-guerra no Iraque. Reconhecendo o óbvio, ele recusa-se contudo a retirar daí a lição correspondente, ao contrário do que fez, por exemplo, quando da guerra contra a Sérvia, onde, e bem, criticou uma iniciativa militar sem "follow-up" político à vista. Agora, face ao desastre patente no Iraque, escreve ele: "Os países europeus que estão numa deriva antiamericana correm logo a apontar o dedo e a dizer: 'Nós bem avisámos.' Não avisaram nada..." Eis de novo a estafada acusação da "deriva antiamericana", confundido antiamericanismo com a oposição a uma política externa de uma administração de extrema-direita, cujos resultados dividem ao meio a própria opinião pública americana e são, até ver, um total desastre no balanço entre os objectivos anunciados e os efeitos alcançados.
Mas Pacheco Pereira anda muito amnésico: alguns países europeus avisaram sim para os perigos de uma intervenção militar que tinha como único objectivo garantido e alcançável o derrube de Saddam Hussein. Avisaram países europeus, avisou a Rússia e a China, avisaram os países árabes moderados, avisaram personalidades de relevo e experiência diplomática dos próprios Estados Unidos e avisaram, entre nós, alguns, logo rapidamente esconjurados como "antiamericanos" pelo Pacheco Pereira e pelos furiosos editorialistas do "Diário de Notícias" ou do "Expresso". Seria aliás interessante, se tudo isto não fosse, como sempre, a feijões, recuperar os textos de uns e de outros, anteriores à guerra, e confrontá-los agora com a realidade dos factos, despida do manto da propaganda.
Entre outras coisas, os que avisaram, os "antiamericanos" à deriva, avisaram para quatro coisas concretas e fundamentais: 1 - que a guerra era ilegítima porque não tinha mandato das Nações Unidas e fundava-se numa invocada ameaça por provar, a da existência de armas de destruição maciça no Iraque; 2- a de que a guerra não contribuiria em nada para o combate ao terrorismo, antes o iria agravar, fornecendo-lhe novos pretextos e novos militantes; 3 - a de que iria tornar mais difíceis e mais tensas as relações entre o mundo árabe e muçulmano e o Ocidente e, em particular, piorando a situação na Palestina; 4 - que os Estados Unidos estavam totalmente impreparados para o pós-guerra no Iraque e dispunham apenas de um punhado de ideias feitas que os convenciam que seriam recebidos como libertadores e rapidamente instaurariam a democracia e a prosperidade entre todas as nações iraquianas. Isto mesmo, sem tirar nem pôr, foi escrito pela revista americana "Newsweek", num longo trabalho de análise, cerca de um mês antes da guerra. Sim, houve avisos, concretos e bastantes. Só não os escutou quem, arrastado pela deriva da moda do americanismo primário, se dispensou de pensar pela própria cabeça, preferindo as verdades feitas e o maniqueísmo simplista dos "bons contra os maus" às interrogações e dúvidas legítimas e pertinentes.
Não é verdade que, como escreveu Pacheco Pereira, a América esteja sozinha na luta antiterrorista. Foram presos mais membros da Al-Qaeda na Europa, desde o 11 de Setembro, do que o foram nos Estados Unidos ou pelos americanos. A América está sozinha é na sua pretensão de decidir quem são os terroristas, como e quando devem ser combatidos e só se lembrar que tem aliados quando as coisas se revelam mais complicadas do que suas expectativas. Está sozinha nisso como está sozinha nos seus ditames de força contra as Nações Unidas, na denúncia unilateral de convenções internacionais para o combate à poluição ou ao aquecimento global, na recusa de aceitar as regras do Tribunal Penal Internacional, excepto contra os outros, na forma deliberada como faz arrastar o conflito do Médio Oriente, no tratamento que dá aos presos de Guantanamo, na violação sempre que lhe convém das regras do comércio internacional por si própria estabelecidas, enfim, em tudo o que caracteriza os princípios de convivência em pé de igualdade de direitos e obrigações duma sociedade de nações.
A actual administração dos Estados Unidos não reclama igualdade mas sim privilégios e vassalagem. Há quem ache isto natural e legítimo e não se importe de marchar atrás, seja para bombardear os céus de Belgrado e da Sérvia dois meses a fio, destruindo todas as infra-estruturas do país, já ninguém se lembra para quê ou com que objectivo, seja para invadir o Iraque com os resultados que estão à vista. Também outrora Álvaro Cunhal anunciava aos crentes que a URSS era o farol da terra e muita gente marchava atrás. Há sempre um exército de crentes disponíveis para legitimar as grandes mentiras da história.
TAVARES, Miguel de Sousa, "Os Americanos", Público, 5 de Setembro de 2003