A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Arundhati roy

Esta é uma síntese editada da conferência feita por Arundhati Roy por ocasião do Prémio da Paz de Sydney de 2004 (2004 Sydney Peace Prize) no Seymour Cente, em 2 de Novembro de 2004.

"Às vezes, algumas frases feitas contêm uma verdade. Não pode haver paz sem justiça. E sem resistência, não haverá justiça. Actualmente, não se trata meramente da justiça em si, mas da própria ideia de justiça que está sob ataque.
A agressão contra sectores frágeis e vulneráveis da sociedade é tão completo, tão cruel e tão astuto que o absoluto atrevimento desse ataque tem corroído até a nossa definição de justiça, forçando-nos a baixar os olhos e a diminuir as nossas expectativas. Mesmo entre os bem intencionados, o magnífico conceito de justiça tem sido gradualmente substituído com o muito mais reduzido e muito mais frágil discurso dos "direitos humanos".
Trata-se de uma mudança alarmante. A diferença é que as noções de igualdade e de paridade têm sido esvaziadas e retiradas da equação. É um processo de atrito. Quase inconscientemente, começamos a pensar em justiça para os ricos e em direitos humanos para os pobres. Justiça para o mundo corporativo, direitos humanos para afegãos e iraquianos. Justiça para as castas mais altas da Índia, direitos humanos para os dalits e adivasis (quando muito). Justiça para os australianos brancos, direitos humanos para os aborígines e imigrantes (a maioria das vezes nem isso).
Está a ficar cada vez mais claro que a violação dos direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de implementação de uma estrutura política e económica coerciva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra os direitos humanos estão a ser mostradas como uma falha infeliz, quase acidental, de um sistema político e económico que seria, de outro modo, perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de atenção por parte de alguma organização não governamental.
É por isso que em áreas de grandes conflitos — na Caxemira e no Iraque, por exemplo — os profissionais de direitos humanos são vistos com um alto grau de suspeita. Muitos movimentos de resistência de países pobres, os quais estão lutando contra grandes injustiças e questionando os princípios de base do que constitui "libertação" e "desenvolvimento", consideram as organizações não governamentais de direitos humanos como missionários contemporâneos que vieram aparar as arestas mais feias do imperialismo — para desactivar a ira política e manter o status quo.
A Austrália reelegeu John Howard há apenas poucas semanas. E foi ele que, entre outras coisas, conduziu esta nação a participar na invasão e ocupação ilegais do Iraque.
Seguramente, essa invasão entrará na História como um dos momentos de maior cobardia de todos os tempos. Foi uma guerra na qual um bando de nações ricas, armadas com armas nucleares suficientes para destruir o mundo inúmeras vezes, cercaram uma nação pobre, falsamente acusada de ter armas nucleares, usaram as Nações Unidas para forçar o seu desarmamento, invadiram-na, em seguida ocuparam-na e agora estão no processo de vendê-la.
Falo do Iraque, não porque todo o mundo está a falar disso, mas porque é o sinal do que está por vir. O Iraque marca o início de um novo ciclo, oferecendo-nos a oportunidade de observar a conspiração corporativo-militar que passou a ser conhecida como o "império" em obras. No novo Iraque, tiraram-se as luvas.
À medida que se intensifica a batalha pelo controle dos recursos do mundo, o colonialismo económico, por meio da agressão militar oficial, está a voltar a cena. O Iraque é a culminação lógica do processo de globalização corporativa no qual se fundiram o neocolonialismo e o neoliberalismo. Se pudéssemos dar uma olhadela através de uma fresta da espessa cortina de sangue, veríamos impiedosas transacções ocorrendo nos bastidores.
Invadido e ocupado, o Iraque teve que pagar US$ 200 mihões (US $270 milhões) em "ressarcimentos" correspondentes a lucros perdidos por corporações como: Halliburton, Shell, Mobil, Nestlé, Pepsi, Kentucky Fried Chicken e Toys R Us. Isso sem contar os US$ 125 biliões de dívida soberana, forçando o país a voltar-se para o FMI e para o seu programa letal de ajuste estrutural. (Embora, no Iraque, parece que não tenham sobrado tantas estruturas passíveis de ajuste.)
Dessa forma, o que significa "paz" neste mundo selvagem, corporativizado e militarizado? O que significa "paz" para as pessoas que vivem no Iraque, na Palestina, na Caxemira, no Tibete e na Tchetchénia ocupados? Ou para o povo aborígine da Austrália? Ou para os curdos na Turquia? Ou para os dalits e adivasis da Índia? O que significa "paz" para os que não são muçulmanos em países islâmicos, ou para as mulheres, no Irão, na Arábia Saudita e no Afeganistão? O que significa "paz" para os milhões de pessoas que estão a ser desarraigadas das suas terras para a construção de represas e projectos de desenvolvimento? O que significa "paz" para os pobres que estão a ser activamente roubados nos seus recursos? Para eles, paz é guerra.
Sabemos perfeitamente quem beneficia com a guerra na era do império. Mas precisamos também de nos perguntar quem beneficia com a paz na era do império. Defender a guerra é criminoso. Mas falar de paz sem falar de justiça torna-se na defesa de um certo tipo de capitulação. E falar de justiça sem tirar a máscara das instituições e dos sistemas que perpetuam a injustiça é muito mais que simples hipocrisia.
É muito fácil culpar os pobres por serem pobres. É fácil acreditar que o mundo está a ser vítima de uma escalada de terrorismo e guerra. É isso que permite a George Bush dizer: "Quem não está connosco está contra nós". Essa é uma escolha falsa. O terrorismo não é mais do que a privatização da guerra. Os terroristas são os livres mercadores da guerra. Eles crêem que o uso legítimo da violência não é prerrogativa exclusiva do estado.
É uma mentira fazer uma distinção moral entre a inacreditável brutalidade do terrorismo e a carnificina indiscriminada da guerra e da ocupação. Ambos os tipos de violência são inaceitáveis. Não podemos apoiar um e condenar o outro."

ROY, Arundhati, www.imediata.com/lancededados/ARUNDHATIROY/arundati_paz.html