Votados à ruína
Os empregados por conta de outrem atingem em certos sectores a situação de neo-escravos desse outrem.Não foi por amor à liberdade que o ser humano acabou com a escravatura: foi por poupança.Quando manter um cativo se revelou mais dispendioso do que retribuir um contratado, o mundo pulou - e abriu-se à era dos assalariados.Não foi por amor à liberdade que as ditaduras cederam lugar às democracias: foi por negócio. Ao tornarem-se limitadores da expansão neocapitalista, os regimes totalitários colapsaram em cascata, como se viu (Portugal, Espanha, Grécia, Brasil, Chile, Argentina, Peru, Filipinas, Guiné, Urss, etc.) nos finais do século passado.Esta visão da história, um pouco cínica, reconheça-se, ganha hoje ressonâncias alertadoras. Estamos, com efeito, a assistir, passada a euforia das referidas mudanças ( que impediu os contentinhos delas de perceberem os logros engendrados), ao emergir de outro ciclo, com dialéticas diferentes mas propósitos afins.Os empregados por conta de outrem são-no cada vez menos atingindo (já) em certos sectores a situação de neo-escravos desse outrem.Os regimes democráticos submergem, por sua vez, em ditaduras de minorias crescentes, porque somadas, como as do lucro selvagem, as da produtividade insaciável, as do consumo alienante, as do sucesso anestesiante.O único poder que neles ainda se sufraga é o político, cada vez mais subjugado, aspirado, no entanto, pelo económico – no qual os cidadãos não metem prego nem estopa, isto é, votos em urnas.A classe dominante (mais restrita e mais dominante) percebeu que o seu domínio se revela mais bem defendido por comunicadores «glamorosos» do que por polícias agressivos, por televisões de permissividades light do que por censores de pudicia beata, por subculturas padronizadas do que por analfabetismos impostos.O país foi (foi-se) dividindo em duas «classes»: a dos integrados no sistema (os privilegiados dele) e a dos excluídos (excedentarizados) por ele.Subtil, um pensamento único (vá lá, dois «pensamentos únicos») cobre tudo e todos – quase tudo e todos. Os cobertos defendem-se dos outros ( com a visão afectada por isso), rotulando-os de «pessimistas» (outrora designavam-nos de subversivos), depreciando-os de incapazes e falhados, insinuando-os de invejosos e venenosos, maneira da sua boa consciência não ficar de pernas para o ar; de pernas para o ar fica a democracia que, se se livrou dos ditadores de outrora, não escapou dos padrinhos da actualidade, totalitários na corrupção, na atracção, na convicção.Os regimes que proliferam à nossa volta deixaram de assentar em poderes de alternância para assentar «em poderes», dizia Júlio Pinto, «de alterne». A manipulação permitida pelas hipertecnologias ( há televisões que elegem, afirmam, presidentes da República) coloca – como na semana passada muito lucidamente comentava Iva Delgado no programa de Simone na TV-Mulher- o mundo a jeito de ditaduras alcançáveis por voto, por terrorismo, por demagogia, por coacções de imprevisíveis consequências.O dilatar do neo-esclavagismo (cerca de 900 mil a mais anualmente) que se observa, veja-se a maneira como são tratados os imigrantes, é indiciador disso. «Um ser humano sem personalidade jurídica» é um objecto transaccionável, lembra Luís Salgado Matos. «Reter os seus documentos é uma maneira de o fazer escravo».As perversões do comunismo observadas na URSS e na China, na Albânia e em Cuba deram álibis irreversíveis para o fim da guerra fria e o início da globalização com que os novos imperialismos aquecem presentemente as liberdades no globo.Os beneficiados da situação continuam, entretanto, a dançar, sorridentes, entre os seus privilégios de lobby, os seus topos de gama, os seus cartões doirados, os seus yes men, os seus cargos cativos, calcando displicentemente, paternalisticamente ( as «rescisões amigáveis» de empregos que o digam) os desafinadores dos acordes da sua música de falsete: «Money, Money, Money, mon, m…»Shopenhauer, o maior pessimista da Europa (influenciou entre nós alguns dos melhores de nós como, nos finais do século XIX, os Vencidos da Vida) nunca teve papas na língua no provocar-nos: «A raça humana está de uma vez por todas votada à ruína.»
Dacosta, Fernando, “Votados à ruína”, Visão, 28 de Agosto de 2003, p.114
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