A Santanada
Se alguém esperava do primeiro-ministro o público pedido de desculpas a que estava obrigado pelos graves comportamentos do seu Governo contra a liberdade de expressão em que vem estando envolvido, enganou-se. A anunciada alocução de Santana Lopes foi precisamente o contrário disso. Uma tentativa de inverter a vaga de críticas que sobre a coligação de direita se abateu a propósito do caso de Marcelo Rebelo de Sousa e não só, algumas das mais contundentes oriundas do próprio PSD. O truque era, aliás, previsível: desvalorizar o clamor dos protestos como "ruído" conspiratório dos "políticos" sem qualquer fundamento, e falar, "para o povo", da excelência da obra em curso e do leite e do mel que aí vêm pela mão do dr. Santana.
Só que a santanada tropeçou em si mesma, tal a inabilidade e a estrutural incompetência em que este Governo se encontra atolado: cada gesto que faz para tentar desfazer a baralhada anterior acentua, em vez de apagar, o pior que existe nesta dupla Santana-Portas e seus sequazes, a quem o Presidente da República deu a faculdade de governar. Porque falhou, então, a encenação propagandística concebida pelas criaturas do dr. Santana?
Em primeiro lugar, porque, querendo desviar as atenções da opinião pública para as graves violações ao pluralismo e à livre expressão nos órgãos de informação de que este Governo é o principal promotor, a própria alocução do primeiro-ministro foi a confirmação dos piores receios que sobre esta matéria possam existir. O discurso não foi transmitido no tempo de antena do Governo, como devia ser, mas no tempo espaço informativo dos telejornais, onde surgiu como um puro acto de propaganda sem contraditório. Ainda por cima, não trazia qualquer informação nova, limitava-se a repetir promessas feitas na véspera pelo chefe do PSD em comício eleitoral nos Açores, a anunciar, pela segunda vez (o ministro das Finanças já o fizera há dias na televisão), as linhas gerais (?) do Orçamento do Estado e a desfiar o habitual rol de auto-elogios à acção do Governo e do seu abalado líder.
Em suma, uma comunicação que deixa as maiores preocupações sobre o futuro da liberdade de expressão neste país enquanto esta gente ficar no poder. Quanto mais isolada estiver a coligação PSD-PP, quanto mais acossado e em queda estiver Santana Lopes e o seu grupo, mais o Governo tenderá a refugiar-se, como agora fez, na conversa em família, na discursata oficial ou oficiosa sem debate e crítica plural, na manipulação dos órgãos de informação onde logrou colocar comissários políticos da sua confiança.
Em segundo lugar, procurava-se com esta "comunicação ao país" recuperar terreno, interromper o declínio, ensaiar um exercício de populismo caudilhista em direcção aos que "têm menos", mostrar-se o Governo da direita como aquele que se preocupa com os "mais desfavorecidos", enquanto "os políticos" se entretêm com intrigas e a "fazer ruído" sem sentido. Mas aqui a tentativa do dr. Santana não fez senão agravar ainda mais as contradições, a trapalhada e a falta de credibilidade relativamente a tudo aquilo em que este Governo toca.
Prometeu baixar as taxas do IRS, o que desdiz a opinião publicamente contrária do governador do Banco de Portugal e, mais do que isso, as explícitas declarações proferidas há dias pelo seu ministro das Finanças na televisão de que não havia condições para qualquer baixa na receita dos impostos. Em que é que ficamos? Baixam os impostos ou não? Quem está a mentir? Ou vai haver, daqui a dias, outra nota oficiosa do gabinete do primeiro-ministro a dizer que, afinal, ele não disse bem o que disse? Como se pode levar isto a sério?
Falou de aumentos dos salários na função pública. Sobre isto já o dr. Santana prometeu que subiriam acima da inflação (o que voltou a insinuar no tal comício açoriano), já o ministro das Finanças disse exactamente o contrário e, anteontem, limitou-se o primeiro-ministro a dizer que iam subir, sem explicar como e quanto. É que se ficarem, como tudo indica, aquém da subida real dos preços (e não das expectativas oficiais sempre propositadamente subestimadas) e não incorporarem os ganhos de produtividade, os salários não sobem, descem em termos reais. E é isso que o Governo, na sua intencional ambiguidade, está realmente a prometer.
Anunciou, na mesma linha vaga de fugir a precisões de números, valores, escalões, etc., a subida das pensões. Ninguém sabe bem o que se vai passar, a não ser isto: a promessa eleitoral, solene, deste Governo de fazer convergir as pensões mais baixas com o salário mínimo é uma miragem cada vez mais distante.
Nesta mão-cheia de nada que o dr. Santana veio oferecer ao país, fez um rol patético da "obra" do seu Governo. O que nele não são ninharias ou feitos alheios são tremendas agressões contra a vida dos mais pobres, dos trabalhadores por conta de outrem, ou das regiões mais deprimidas do país: taxas moderadoras da saúde mais caras e a pagar pelos mais carenciados, que são os que recorrem aos serviços públicos de saúde, uma lei das rendas que a breve trecho se vai revelar como a lei dos despejos, as portagens nas scut para agravar ainda mais a interioridade e a discriminação das regiões periféricas. Mas esqueceu-se de anunciar os aumentos trimestrais dos transportes públicos e a subida imparável do desemprego, tudo num quadro de quebra persistente do poder de compra.
Esqueceu-se também de explicar como é que tanta preocupação com "os que mais precisam" se compatibiliza com o recrutamento, em dois curtos meses, de milhares de "boys" dos partidos do poder, com ordenados frequentemente escandalosos, para as sinecuras do Estado e das empresas públicas; como vai lidar com as pensões milionárias da Caixa Geral de Depósitos, aliás transformada em depósito dourado de ministros incompetentes; o que vai fazer de concreto para combater a evasão e a fraude fiscal... Um afã de promessas redentoras que roça a irresponsabilidade, quando não se deixa cair nem uma palavra de prudência face à subida em flecha dos preços do petróleo que já ultrapassaram os 50 dólares por barril.
Em suma, um populismo já gasto, sem garra, preso, apesar deste ensaio de retórica despesista, nos limites do défice (para cuja política, verdadeiramente, a direita não tem alternativa), sem real margem de manobra, tropeçando constantemente nas suas mentiras, contradições e impossibilidades.
Em terceiro lugar, quiseram esses incompreendidos génios da propaganda santanista encenar o chefe em pose solene de homem de Estado, sentado à secretária, transpirando estabilidade institucional e unidade da coligação por sobre a espuma da intrigalhada da política menor. Mas a operação estava destinada à hilariedade geral, quando é sabido que algumas das mais duras críticas à governação santanista, chamemos-lhe assim por facilidade de expressão, vêm não só da coligação, mas do próprio PSD. Tanto no principal partido da coligação no poder, como no seio do Governo, é já indisfarçável o mal-estar geral, a barafunda, as contradições, os desmentidos, os tiros no pé, desde a saúde e as finanças ao ambiente, passando pelos fiascos da educação e os delírios bacocos da política de defesa.
Também, porque no meio de tanta pompa institucional, a via do dr. Santana leva, inexoravelmente, a que lhe fuja o pé para o chinelo. E não resistiu, aliás sintomaticamente, a provocar o Presidente da República, por insinuar publicamente divergências com o Governo. Como se estivesse ciente da impotência presidencial para correr com ele ou quisesse, por antecipação, surgir como vítima de qualquer inesperado golpe de humor presidencial. Na mesma linha, aliás, o dr. Santana desafia e desrespeita o Parlamento, procurando discutir e decidir o OE fora dele, à margem de qualquer debate sério e fundamentado, a golpes de propaganda.
O discurso do primeiro-ministro resumindo saldou-se num acto cinzento e melancólico de propaganda, sem golpe de asa, sem convicção, sem seriedade, qual recurso à beira do limite de alguém que não está preparado para governar e que não sabe bem como se manter à tona de água. A direita no seu pior.
Não será mais do que tempo de pôr um ponto final nesta balbúrdia de preço tão elevado e devolver a voz aos eleitores? Afinal de contas o dr. Santana só pode estar onde está porque lhes foi negado o direito de se pronunciarem.
Só que a santanada tropeçou em si mesma, tal a inabilidade e a estrutural incompetência em que este Governo se encontra atolado: cada gesto que faz para tentar desfazer a baralhada anterior acentua, em vez de apagar, o pior que existe nesta dupla Santana-Portas e seus sequazes, a quem o Presidente da República deu a faculdade de governar. Porque falhou, então, a encenação propagandística concebida pelas criaturas do dr. Santana?
Em primeiro lugar, porque, querendo desviar as atenções da opinião pública para as graves violações ao pluralismo e à livre expressão nos órgãos de informação de que este Governo é o principal promotor, a própria alocução do primeiro-ministro foi a confirmação dos piores receios que sobre esta matéria possam existir. O discurso não foi transmitido no tempo de antena do Governo, como devia ser, mas no tempo espaço informativo dos telejornais, onde surgiu como um puro acto de propaganda sem contraditório. Ainda por cima, não trazia qualquer informação nova, limitava-se a repetir promessas feitas na véspera pelo chefe do PSD em comício eleitoral nos Açores, a anunciar, pela segunda vez (o ministro das Finanças já o fizera há dias na televisão), as linhas gerais (?) do Orçamento do Estado e a desfiar o habitual rol de auto-elogios à acção do Governo e do seu abalado líder.
Em suma, uma comunicação que deixa as maiores preocupações sobre o futuro da liberdade de expressão neste país enquanto esta gente ficar no poder. Quanto mais isolada estiver a coligação PSD-PP, quanto mais acossado e em queda estiver Santana Lopes e o seu grupo, mais o Governo tenderá a refugiar-se, como agora fez, na conversa em família, na discursata oficial ou oficiosa sem debate e crítica plural, na manipulação dos órgãos de informação onde logrou colocar comissários políticos da sua confiança.
Em segundo lugar, procurava-se com esta "comunicação ao país" recuperar terreno, interromper o declínio, ensaiar um exercício de populismo caudilhista em direcção aos que "têm menos", mostrar-se o Governo da direita como aquele que se preocupa com os "mais desfavorecidos", enquanto "os políticos" se entretêm com intrigas e a "fazer ruído" sem sentido. Mas aqui a tentativa do dr. Santana não fez senão agravar ainda mais as contradições, a trapalhada e a falta de credibilidade relativamente a tudo aquilo em que este Governo toca.
Prometeu baixar as taxas do IRS, o que desdiz a opinião publicamente contrária do governador do Banco de Portugal e, mais do que isso, as explícitas declarações proferidas há dias pelo seu ministro das Finanças na televisão de que não havia condições para qualquer baixa na receita dos impostos. Em que é que ficamos? Baixam os impostos ou não? Quem está a mentir? Ou vai haver, daqui a dias, outra nota oficiosa do gabinete do primeiro-ministro a dizer que, afinal, ele não disse bem o que disse? Como se pode levar isto a sério?
Falou de aumentos dos salários na função pública. Sobre isto já o dr. Santana prometeu que subiriam acima da inflação (o que voltou a insinuar no tal comício açoriano), já o ministro das Finanças disse exactamente o contrário e, anteontem, limitou-se o primeiro-ministro a dizer que iam subir, sem explicar como e quanto. É que se ficarem, como tudo indica, aquém da subida real dos preços (e não das expectativas oficiais sempre propositadamente subestimadas) e não incorporarem os ganhos de produtividade, os salários não sobem, descem em termos reais. E é isso que o Governo, na sua intencional ambiguidade, está realmente a prometer.
Anunciou, na mesma linha vaga de fugir a precisões de números, valores, escalões, etc., a subida das pensões. Ninguém sabe bem o que se vai passar, a não ser isto: a promessa eleitoral, solene, deste Governo de fazer convergir as pensões mais baixas com o salário mínimo é uma miragem cada vez mais distante.
Nesta mão-cheia de nada que o dr. Santana veio oferecer ao país, fez um rol patético da "obra" do seu Governo. O que nele não são ninharias ou feitos alheios são tremendas agressões contra a vida dos mais pobres, dos trabalhadores por conta de outrem, ou das regiões mais deprimidas do país: taxas moderadoras da saúde mais caras e a pagar pelos mais carenciados, que são os que recorrem aos serviços públicos de saúde, uma lei das rendas que a breve trecho se vai revelar como a lei dos despejos, as portagens nas scut para agravar ainda mais a interioridade e a discriminação das regiões periféricas. Mas esqueceu-se de anunciar os aumentos trimestrais dos transportes públicos e a subida imparável do desemprego, tudo num quadro de quebra persistente do poder de compra.
Esqueceu-se também de explicar como é que tanta preocupação com "os que mais precisam" se compatibiliza com o recrutamento, em dois curtos meses, de milhares de "boys" dos partidos do poder, com ordenados frequentemente escandalosos, para as sinecuras do Estado e das empresas públicas; como vai lidar com as pensões milionárias da Caixa Geral de Depósitos, aliás transformada em depósito dourado de ministros incompetentes; o que vai fazer de concreto para combater a evasão e a fraude fiscal... Um afã de promessas redentoras que roça a irresponsabilidade, quando não se deixa cair nem uma palavra de prudência face à subida em flecha dos preços do petróleo que já ultrapassaram os 50 dólares por barril.
Em suma, um populismo já gasto, sem garra, preso, apesar deste ensaio de retórica despesista, nos limites do défice (para cuja política, verdadeiramente, a direita não tem alternativa), sem real margem de manobra, tropeçando constantemente nas suas mentiras, contradições e impossibilidades.
Em terceiro lugar, quiseram esses incompreendidos génios da propaganda santanista encenar o chefe em pose solene de homem de Estado, sentado à secretária, transpirando estabilidade institucional e unidade da coligação por sobre a espuma da intrigalhada da política menor. Mas a operação estava destinada à hilariedade geral, quando é sabido que algumas das mais duras críticas à governação santanista, chamemos-lhe assim por facilidade de expressão, vêm não só da coligação, mas do próprio PSD. Tanto no principal partido da coligação no poder, como no seio do Governo, é já indisfarçável o mal-estar geral, a barafunda, as contradições, os desmentidos, os tiros no pé, desde a saúde e as finanças ao ambiente, passando pelos fiascos da educação e os delírios bacocos da política de defesa.
Também, porque no meio de tanta pompa institucional, a via do dr. Santana leva, inexoravelmente, a que lhe fuja o pé para o chinelo. E não resistiu, aliás sintomaticamente, a provocar o Presidente da República, por insinuar publicamente divergências com o Governo. Como se estivesse ciente da impotência presidencial para correr com ele ou quisesse, por antecipação, surgir como vítima de qualquer inesperado golpe de humor presidencial. Na mesma linha, aliás, o dr. Santana desafia e desrespeita o Parlamento, procurando discutir e decidir o OE fora dele, à margem de qualquer debate sério e fundamentado, a golpes de propaganda.
O discurso do primeiro-ministro resumindo saldou-se num acto cinzento e melancólico de propaganda, sem golpe de asa, sem convicção, sem seriedade, qual recurso à beira do limite de alguém que não está preparado para governar e que não sabe bem como se manter à tona de água. A direita no seu pior.
Não será mais do que tempo de pôr um ponto final nesta balbúrdia de preço tão elevado e devolver a voz aos eleitores? Afinal de contas o dr. Santana só pode estar onde está porque lhes foi negado o direito de se pronunciarem.
ROSAS, Fernando, "A Santanada", Público, 13 de Outubro de 2004.
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