Elogio do Bom Senso
O nosso mundo doente de inconstância e desamparos sofre de uma outra bem cruel doença: a ausência de espaços amplos abertos ao diálogo e ao trabalho em comum. Onde encontrar um terreno de reunião em que o encontro e a troca ainda sejam possíveis? Não podemos nós começar por procurá-lo no senso comum? Neste bom senso hoje tão precioso e tão raro?
Vejamos, por exemplo, as despesas militares. O mundo dedica por dia 2,2 mil milhões de dólares à produção de morte. Mais precisamente, o mundo dedica esta fortuna astronómica a promover gigantescas caçadas em que o predador e a presa são da mesma espécie e de onde sai vencedor aquele que tiver matado o maior número dos seus congéneres. Nove dias de despesas militares é quanto bastaria para fornecer alimento, educação e cuidados médicos a todas as crianças da Terra que os não têm.
A priori, esta devassidão financeira constitui uma flagrante violação do sentido comum. E a posteriori? A versão oficial justifica tamanho desperdício invocando a guerra contra o terrorismo. Mas o bom senso diz-nos que o terrorismo lhe fica extremamente grato. Não é preciso sermos grandes sábios para constatar que as guerras do Afeganistão e do Iraque foram para o terrorismo um estímulo importante. As guerras correspondem a terrorismo de estado, o terrorismo de Estado alimenta-se com o terrorismo privado, e reciprocamente…
Os números foram publicados recentemente: a economia norte-americana retoma a sua progressão e volta a um crescimento de ritmo satisfatório. Segundo os peritos, sem as despesas ligadas à guerra na Mesopotâmia um tal crescimento seria nitidamente inferior. De certa maneira, portanto, a guerra contra o Iraque é uma excelente notícia para a economia. E para os mortos? Far-se-á o sentido comum ouvir pela voz das estatísticas económicas ou pela voz de um pai mortificado, Júlio Anguita, quando este diz: «Maldita seja esta guerra e todas as guerras»?
Os cinco maiores fabricantes e vendedores de armas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) são os Estados com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não será um insulto ao bom senso que os garantes da paz mundial sejam também os mais importantes fornecedores de armas do planeta?
Na hora da verdade, são estes cinco países que mandam. São eles, igualmente, que dirigem o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quase todos figuram entre os oito Estados que tomam as decisões determinantes no Banco Mundial, bem como na Organização Mundial de Comércio (OMC), onde o direito de voto está previsto mas nunca é utilizado.
Não deveria a luta pela democracia no mundo começar pela democratização dos organismos pretensamente internacionais? Que diz a este respeito o sentido comum? Não está previsto que ele emita opiniões. O bom senso não tem direito a voto, nem direito a falar.
Uma grande parte dos crimes mais atrozes e dos piores prejuízos que se cometem neste planeta é perpetrada através destes organismos (FMI, Banco Mundial, OMC) pretensamente internacionais. As suas vítimas são os «desaparecidos»; não os que se perderam no horror das ditaduras militares, mas os que «desaparecem» na democracia. No meu país, o Uruguai, nos últimos anos, bem como no resto da América Latina e nas outras regiões do mundo, desapareceram os empregos, os salários, as aposentações, as fábricas, as terras, os rios, e até os nossos próprios filhos, forçados a emigrar em busca daquilo que perderam retomando os passos, em sentido inverso, dos seus antepassados.
Acaso nos obrigará o bom senso a ter de suportar estas dores evitáveis? A aceitá-las, cruzando os braços, como se fossem a obra fatal do tempo ou da morte?
Aceitação? Resignação? Temos de admitir que a pouco e pouco o mundo se torna cada vez menos justo. Para dar um exemplo, a diferença entre o salário da mulher e o do homem já não é tão abissal como outrora. Mas ao ritmo a que as coisas vão, ou seja, nada depressa, a igualdade salarial entre homens e mulheres deverá realizar-se daqui a 475 anos! Que aconselha o bom senso? Esperar? Não há mulher nenhuma, que eu saiba, capaz de viver tanto tempo.
A verdadeira educação, a que emana do bom senso e conduz ao bom senso, ensina-nos a lutar para reavermos aquilo que nos usurparam. O bispo catalão Pedro Casaldaliga tem uma longa experiência dos anos passados na floresta brasileira. O que ele diz é o seguinte: se é verdade que mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe, em contrapartida para nada serve ensinar a pescar se os rios tiverem sido envenenados ou vendidos.
Para pôr os ursos a dançar nos circos, o domador prepara-os; ao ritmo da música, bate-lhes com um pau coberto de espetos. Se dançarem correctamente, o domador deixa de lhes bater e dá-lhes comida. De contrário, a tortura continua, e à noite os ursos voltam para as jaulas de barriga vazia. Por medo, medo das pancadas e da fome, os ursos dançam. Do ponto de vista do domador isto é puro bom senso. Mas do ponto de vista do animal quebrantado?
Setembro de 2001, Nova Iorque. Quando o avião desventrou a segunda torre e esta começou a estalar e depois a desmoronar-se, as pessoas precipitaram-se pelas escadas abaixo a toda a pressa. Os altifalantes intimaram então todos os assalariados a regressar aos seus postos de trabalho. Quais terão agido com bom senso? Só os que desobedeceram se salvaram.
Para nos salvarmos, juntemo-nos. Como os patos voadores de um mesmo voo.
Tecnologia do voo colectivo: o primeiro pato lança-se e abre caminho ao segundo, que indica o caminho ao terceiro, e a energia do terceiro leva o quarto pato a voar, que arrasta o quinto, e o impulso do quinto provoca o voo do sexto, que dá forças ao sétimo…
Quando o pato batedor se cansa, volta à cauda do bando e dá lugar a outro, que sobe ao cume daquele V invertido que os patos desenham no ar. Todos sucessivamente irão à frente e atrás do grupo. Segundo o meu amigo Juan Díaz Bordenave, que não é «palmípedologista» mas que sabe da poda, nenhum pato se toma por superpato quando voa à frente, nem por subpato quando vai na cauda. Os patos, quanto a eles, não perderam o bom senso.
GALEANO, Eduardo, “Elogio do bom senso”, Le Monde Diplomatique, nº65, 2004
Vejamos, por exemplo, as despesas militares. O mundo dedica por dia 2,2 mil milhões de dólares à produção de morte. Mais precisamente, o mundo dedica esta fortuna astronómica a promover gigantescas caçadas em que o predador e a presa são da mesma espécie e de onde sai vencedor aquele que tiver matado o maior número dos seus congéneres. Nove dias de despesas militares é quanto bastaria para fornecer alimento, educação e cuidados médicos a todas as crianças da Terra que os não têm.
A priori, esta devassidão financeira constitui uma flagrante violação do sentido comum. E a posteriori? A versão oficial justifica tamanho desperdício invocando a guerra contra o terrorismo. Mas o bom senso diz-nos que o terrorismo lhe fica extremamente grato. Não é preciso sermos grandes sábios para constatar que as guerras do Afeganistão e do Iraque foram para o terrorismo um estímulo importante. As guerras correspondem a terrorismo de estado, o terrorismo de Estado alimenta-se com o terrorismo privado, e reciprocamente…
Os números foram publicados recentemente: a economia norte-americana retoma a sua progressão e volta a um crescimento de ritmo satisfatório. Segundo os peritos, sem as despesas ligadas à guerra na Mesopotâmia um tal crescimento seria nitidamente inferior. De certa maneira, portanto, a guerra contra o Iraque é uma excelente notícia para a economia. E para os mortos? Far-se-á o sentido comum ouvir pela voz das estatísticas económicas ou pela voz de um pai mortificado, Júlio Anguita, quando este diz: «Maldita seja esta guerra e todas as guerras»?
Os cinco maiores fabricantes e vendedores de armas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) são os Estados com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não será um insulto ao bom senso que os garantes da paz mundial sejam também os mais importantes fornecedores de armas do planeta?
Na hora da verdade, são estes cinco países que mandam. São eles, igualmente, que dirigem o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quase todos figuram entre os oito Estados que tomam as decisões determinantes no Banco Mundial, bem como na Organização Mundial de Comércio (OMC), onde o direito de voto está previsto mas nunca é utilizado.
Não deveria a luta pela democracia no mundo começar pela democratização dos organismos pretensamente internacionais? Que diz a este respeito o sentido comum? Não está previsto que ele emita opiniões. O bom senso não tem direito a voto, nem direito a falar.
Uma grande parte dos crimes mais atrozes e dos piores prejuízos que se cometem neste planeta é perpetrada através destes organismos (FMI, Banco Mundial, OMC) pretensamente internacionais. As suas vítimas são os «desaparecidos»; não os que se perderam no horror das ditaduras militares, mas os que «desaparecem» na democracia. No meu país, o Uruguai, nos últimos anos, bem como no resto da América Latina e nas outras regiões do mundo, desapareceram os empregos, os salários, as aposentações, as fábricas, as terras, os rios, e até os nossos próprios filhos, forçados a emigrar em busca daquilo que perderam retomando os passos, em sentido inverso, dos seus antepassados.
Acaso nos obrigará o bom senso a ter de suportar estas dores evitáveis? A aceitá-las, cruzando os braços, como se fossem a obra fatal do tempo ou da morte?
Aceitação? Resignação? Temos de admitir que a pouco e pouco o mundo se torna cada vez menos justo. Para dar um exemplo, a diferença entre o salário da mulher e o do homem já não é tão abissal como outrora. Mas ao ritmo a que as coisas vão, ou seja, nada depressa, a igualdade salarial entre homens e mulheres deverá realizar-se daqui a 475 anos! Que aconselha o bom senso? Esperar? Não há mulher nenhuma, que eu saiba, capaz de viver tanto tempo.
A verdadeira educação, a que emana do bom senso e conduz ao bom senso, ensina-nos a lutar para reavermos aquilo que nos usurparam. O bispo catalão Pedro Casaldaliga tem uma longa experiência dos anos passados na floresta brasileira. O que ele diz é o seguinte: se é verdade que mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe, em contrapartida para nada serve ensinar a pescar se os rios tiverem sido envenenados ou vendidos.
Para pôr os ursos a dançar nos circos, o domador prepara-os; ao ritmo da música, bate-lhes com um pau coberto de espetos. Se dançarem correctamente, o domador deixa de lhes bater e dá-lhes comida. De contrário, a tortura continua, e à noite os ursos voltam para as jaulas de barriga vazia. Por medo, medo das pancadas e da fome, os ursos dançam. Do ponto de vista do domador isto é puro bom senso. Mas do ponto de vista do animal quebrantado?
Setembro de 2001, Nova Iorque. Quando o avião desventrou a segunda torre e esta começou a estalar e depois a desmoronar-se, as pessoas precipitaram-se pelas escadas abaixo a toda a pressa. Os altifalantes intimaram então todos os assalariados a regressar aos seus postos de trabalho. Quais terão agido com bom senso? Só os que desobedeceram se salvaram.
Para nos salvarmos, juntemo-nos. Como os patos voadores de um mesmo voo.
Tecnologia do voo colectivo: o primeiro pato lança-se e abre caminho ao segundo, que indica o caminho ao terceiro, e a energia do terceiro leva o quarto pato a voar, que arrasta o quinto, e o impulso do quinto provoca o voo do sexto, que dá forças ao sétimo…
Quando o pato batedor se cansa, volta à cauda do bando e dá lugar a outro, que sobe ao cume daquele V invertido que os patos desenham no ar. Todos sucessivamente irão à frente e atrás do grupo. Segundo o meu amigo Juan Díaz Bordenave, que não é «palmípedologista» mas que sabe da poda, nenhum pato se toma por superpato quando voa à frente, nem por subpato quando vai na cauda. Os patos, quanto a eles, não perderam o bom senso.
GALEANO, Eduardo, “Elogio do bom senso”, Le Monde Diplomatique, nº65, 2004
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