A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Um Submarino ao Fundo

De vez em quando Alberto João Jardim vem à televisão e dá lições de democracia. Ninguém acredita, mas ele dá. Explica como a democracia se faz, quais as regras, o modo como se deve exercer, a forma como deve ser concebida. Jardim não tem dúvidas, sabe o que é a democracia, e há anos que consegue mostrar como na Madeira a democracia existe em todo o lado. Basta fazer o que ele diz, pensar como ele pensa, fazer as festas democráticas que ele faz, proferir os discursos que profere, fechar os jornais que ele acha que não são democráticos, afastar as pessoas que não correspondem aos seus ideais de democracia, e a democracia está assegurada.
Por vezes pasmamos com tanto descaramento, com a forma absolutamente despudorada como Alberto João Jardim nos diz que a democracia se concretiza. Mas é puro engano. Ele é que sabe. E tem um argumento de peso. Se o povo continua a dar-lhe a vitória, se os votos continuam a aparecer, se as urnas dizem sempre a mesma coisa, é porque o povo está com Alberto João Jardim, e o povo é o Alberto João e o Alberto João é a democracia. Raciocínios destes são puros como a água. As oposições deviam ser eliminadas (ou envenenadas, como na Ucrânia) porque se são apenas oposições, e não maioria, então é porque não têm o povo com elas e por isso são antidemocráticas.
Tão límpidas concepções políticas deviam ser explicadas a todos os portugueses. Por vez Alberto João tem ganas de vir por aí abaixo para pôr as coisas na ordem. Portugal está dominado por jornalistas corruptos, políticos corruptos, oposições (imaginem!), gente que não pensa como o Alberto João, e era preciso mudar o sistema, pôr esta choldra na ordem, impor pela força a verdadeira democracia.
Calculem que há dias o ex-comandante da Zona Marítima, tendo abandonado as suas funções, acabou por explicar qual a concepção democrática de Alberto João. E é elucidativo. Segundo o comandante Figueiredo Robles, ele, o ex-comandante, foi alvo de "pródigos insultos" que "só não abalaram a minha família e meus amigos porque estes conheciam os factos e, mais do que isso, estavam esclarecidos sobre a personalidade de quem as proferia". Tudo democrático, portanto. Foi tratado de "indisciplinado", "traumatizado", "desrespeitador", "colonialista" e "militar de Abril". Diz Robles Figueiredo que esta situação revelar-se-ia muito mais grave "se eu quisesse também referir os impropérios emitidos por alguns dos seus correligionários". E diz no final da carta que enviou: "Sr. dr. Jardim. Por muito que lhe custe, ficou evidente que a cultura do medo não me envolveu nos seus braços; contudo, curvo-me respeitosamente, isso sim, perante aqueles que, vivendo o quotidiano nessa região, ousam fazer da sua verticalidade um hino à coragem e à esperança."
Concluindo, a partir dos fragmentos citados nesta carta: Alberto João Jardim é um modelo de democracia. Quem quiser aprender que vá para a Madeira. As lições são gratuitas. Ouvindo e vendo a personagem na televisão, nós já desconfiávamos de que nem tudo batia certo. Tivemos agora a confirmação.
COELHO, Eduardo Prado,"Um Submarino ao Fundo", Público, 14 de Dezembro de 2004.