A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, março 05, 2005

A luta pela memória nas sociedades livres

Como funciona o controle de pensamento em sociedades que se dizem livres? Por que jornalistas famosos são tão ansiosos, quase como um reflexo, por minimizar a culpabilidade de líderes políticos tais como Bush e Blair que partilham a responsabilidade pelo ataque não provocado a um povo indefeso, por levar a devastação à sua terra e por matar pelo menos 100 mil pessoas, a maior parte delas civis, tendo procurado justificar este crime atroz com mentiras comprovadas? Por que um repórter da BBC descreve a invasão do Iraque como "uma vingança de Blair"? Por que as emissoras de rádio e TV nunca associaram os Estados britânico e americano ao terrorismo? Por que tais comunicadores privilegiados, com acesso ilimitado aos factos, alinharam-se para descrever uma eleição não observada, não verificada, ilegítima, cinicamente manipulada, efectuada sob uma ocupação brutal, como "democrática" e com o imaculado propósito de ser "livre e justa"?
Será que eles não lêem a história? Ou estará a história que sabem, ou preferem saber, sujeita a tal amnésia e omissão que produz uma visão do mundo através de um espelho moral unilateral? Não há qualquer sugestão de conspiração. Este espelho de uma só face assegura que a maior parte da humanidade seja encarada quanto à sua utilidade para "nós", sua desejabilidade ou dispensabilidade, seu mérito ou demérito do nosso ponto de vista. Exemplo: a noção de curdos "bons" no Iraque e curdos "maus" na Turquia. A assunção infalível de que "nós" no ocidente dominante temos padrões morais superiores a "eles". Um dos "seus" ditadores (muitas vezes um antigo cliente nosso, como Saddam Hussein) mata milhares de pessoas e é declarado um monstro, um segundo Hitler. Quando um dos nossos líderes faz o mesmo, é encarado, na pior das hipóteses como Blair, em termos shakespearianos. Aqueles que matam pessoas com carros bombas são "terroristas"; aqueles que matam muito mais pessoas com bombas cluster são os nobres ocupantes de um "pântano".
A amnésia histórica pode difundir-se rapidamente. Apenas dez anos após a guerra do Vietnam, que eu cobri, um inquérito de opinião pública nos Estados Unidos revelou que um terço dos americanos não podia recordar-se qual o lado que o seu governo havia apoiado. Isto demonstrou o poder insidioso da propaganda dominante, de que a guerra era essencialmente um conflito de "bons" vietnamitas contra "maus" vietnamitas, no qual os americanos foram "envolvidos", levando a democracia ao povo do Vietnam do sul que enfrentava uma "ameaça comunista". Tais suposições falsas e desonestas permeiam a cobertura dos media, com excepções honrosas. A verdade é que a mais prolongada guerra do século XX foi travada contra o Vietnam, o norte e o sul, comunista e não comunista, pela América. Foi uma invasão não provocada da sua pátria e das suas vida, assim como a invasão do Iraque. A amnésia assegura que, enquanto as relativamente poucas mortes dos invasores são constantemente reconhecidas, as mortes dos mais de cinco milhões de vietnamitas são remetidas ao esquecimento.
Quais são as raízes deste fenómeno? Certamente, a "cultura popular", especialmente filmes de Hollywood, podem determinar o que e quão pouco nos lembramos. A educação selectiva em idade precoce desempenha a mesma tarefa. Enviaram-me um guia de revisão para estudantes da moderna história mundial, amplamente utilizado, acerca do Vietnam e da guerra fria. O seu conteúdo é aprendido por garotos de 14 a 16 anos nas escolas britânicas que se preparam para o crítico exame GCSE. Ele informa o seu entendimento de um período histórico fundamental, o qual deverá influenciar o modo como compreenderão as notícias de hoje do Iraque e alhures.
Ele é chocante. Ele afirma que sob o acordo de Genebra de 1954 "o Vietnam estava repartido no norte comunista e no sul democrático". Numa só frase, a verdade é despachada. A declaração final da conferência de Genebra dividia o Vietnam "temporariamente" até que eleições livres nacionais fossem efectuadas na data de 26 de Julho de 1956. Havia pouca dúvida que Ho Chi Minh venceria e formaria o primeiro governo democraticamente eleito do Vietnam. O presidente Einsenhower certamente não tinha dúvida quanto a isto: "Nunca conversei com uma pessoa conhecedora dos assuntos indochineses", escreveu ele, "que não concordasse em que ... oitenta por cento da população teria votado pelo comunista Ho Chi Minh como seu líder".
Não só os Estados Unidos recusaram permitir à ONU que administrasse as eleições acordadas dois anos depois, como o "democrático" regime no sul era uma invenção. Um dos inventores, o responsável da CIA Ralph McGehee, descreve no seu livro magistral "Enganos fatais" (Deadly Deceits) como um brutal mandarim expatriado, Ngo Dinh Diem, foi importado de Nova Jersey para ser "presidente" e um governo impostor foi colocado no poder. "Foi ordenado à CIA", escreveu ele, "sustentar tal ilusão através da propaganda [colocada nos media]".
Arranjaram eleições falsificadas, saudadas no ocidente como "livres e justas", com responsáveis americanos a fabricarem "um comparecimento de 83 por cento apesar do terror Vietcong". O guia não se refere a nada disto, nem tão pouco que "os terroristas", aos quais os americanos chamavam Vietcong, eram também sulistas a defenderem a sua pátria contra a invasão americana e cuja resistência era popular. Por Vietnam leia-se Iraque.
O tom deste panfleto é do "nosso" ponto de vista. Não há a noção de que existiu um movimento de libertação nacional do Vietnam, simplemente "uma ameaça comunista", simplesmente a propaganda de que "os EUA estavam aterrorizados por muitos outros países poderem tornar-se comunistas e ajudarem a URSS — eles não queriam um número maior ", simplesmente que o presidente Johnson "estava determinado a manter o Vietnam do Sul livre de comunistas" (ênfase no original). Este prosseguiu rapidamente para a Ofensiva do Tet em 1968, a qual "acabou na perda de milhares de vidas americanas -- 14 mil em 1969 -- a maior parte foram jovens". Não há qualquer menção aos milhões de vidas vietnamitas também perdidas na ofensiva. E a América meramente começou "uma campanha de bombardeamento": não há referência à maior tonelagem de bombas já despejada na história da guerra, de uma estratégia militar que concebida deliberadamente a fim de forçar milhões de pessoas a abandonarem os seus lares, e aos produtos químicos utilizados de uma maneira que alterou profundamente o ambiente e a ordem genética, deixando uma terra outrora generosa quase arruinada.
Este guia de revisão reflecte os viezes e distorções dos manuais oficiais, tais como o prestigioso manual de Oxford e Cambridge, utilizado por todo o mundo como modelo. Sua secção da guerra fria refere-se ao "expansionismo" soviético e a "difusão" do comunismo, não há uma palavra acerca da "difusão" predatória da América. Uma da sua "questões chave" é: "Quão efectivamente os EUA contiveram a difusão do comunismo?" O bem versus o mal para mentes não orientadas.
"Caramba, montes de coisas para você aprender aqui..." dizem os autores do guia de revisão, "assim aprenda correctamente agora". Caramba, o império britânico não existiu; não há nada sobre as atrozes guerras coloniais que foram modelos para a potência sucessora, a América, na Indonésia, Vietnam, Chile, El Salvador, Nicarágua, para nomear apenas umas poucas ao longo do rastro de sangue da moderna história imperial, da qual o Iraque é a mais recente.
E agora o Irão? Os tambores da guerra já começaram. Quantas mais pessoas inocentes têm de morrer antes que aqueles filtram o passado e o presente despertem para a sua responsabilidade moral de proteger a nossa memória e as vidas de seres humanos?

PILGER, John,"A luta pela memória nas sociedades livres",15 de Fevereiro de 2005.


17/Fev/2005
[*] John Pilger nasceu e criou-se em Sidney, Austrália. Já foi correspondente de guerra, director de cinema e autor de peças de teatro. Residente em Londres, escreveu a partir de muitos países e ganhou por duas vezes o mais alto prémio do jornalismo britânico, o de "Journalist of the Year", pelo seu trabalho no Vietnam e no Cambodja. O seu novo livro, Tell Me No Lies: Investigative Journalism and Its Triumphs, foi publicado pela Jonathan Cape. O original encontra-se em http://pilger.carlton.com/print . Tradução de JF. Este artigo também apareceu, sob o título "John Pilger descobre que os nossos filhos aprendem mentiras", no New Statesman (21/Fev/2005). Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .