A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

segunda-feira, maio 30, 2005

A Nova Pirataria.

“Segundo o Banco de Portugal, o conjunto das famílias portuguesas deviam 117% do seu rendimento anual em finais de 2004. De acordo com as previsões, a dívida vai subir ainda mais este ano. Trocados por miúdos, estes números significam que as famílias que contraíram empréstimos recorrendo ao crédito teriam de trabalhar mais de um ano, sem gastar um cêntimo em alimentação, vestuário, saúde, escola, transportes, livros, férias – sem gastar um tostão em nada!-, apenas para poder pagar o que devem!. «O dinheiro representa hoje uma nova forma de escravatura impessoal que substituiu a antiga escravatura da pessoa», dizia Tolstoi. A lusa realidade ultrapassa o pessimismo russo.

Como é possível? Pois graças aos méritos do abençoado sistema de mercado. Este novo deus garante-nos que é preciso produzir cada vez mais, a mais baixo custo e consumir cada vez mais. Portanto, é indispensável gastar, gastar sempre mais- mesmo quando já não há dinheiro para gastar. Que importa. A publicidade existe para criar as apetências e o crédito para engordar a carteira vazia. Gaste agora, pague depois. Só que o depois é agora! Agora, neste tempo de emprego precário, de desemprego, de divórcio, da morte do outro com quem se partilhava o pagamento da dívida. Tempo de miséria em que o fim do mês nunca mais chega, mas antes se arrasta em pobreza envergonhada, no sufoco das prestações que assombram o sono e tornam os lares «sem pão» mesquinhos e amargos. Em vez do paraíso prometido, as famílias dão por si no Inferno.

Excluindo, como está, que os portugueses sejam globalmente estúpidos, inconscientes ou incapazes de deitar contas à vida, sobram razões evidentes que os levam a hipotecar o real para sobreviver no virtual. Esses motivos são os estímulos da publicidade, a par do incitamento ao crédito. Enquanto a publicidade procura vender o máximo, a todos, fazendo crer a cada um que é diferente dos outros, as instituições de crédito concedem empréstimos ao consumidor, tentando passar a ideia de que o crédito não custa dinheiro. Alguns defensores do consumidor consideram que se trata de uma espécie de pirataria legal. Se os piratas espoliavam as suas vítimas, a publicidade e o incitamento ao crédito inculcam nas vítimas o desejo de ser despojadas. Feitas as contas, o resultado prático é o mesmo: os haveres amealhados ( e futuramente amealháveis) passam de um bolso para o outro.

O Governo inquieta-se e o secretário de Estado com o pelouro da Defesa dos Consumidores, em declarações prestadas ao DN, anuncia que serão tomadas medidas »a breve prazo». Medidas que vão certamente ao encontro das que a Comissão Europeia anda a prometer adoptar desde 2000 e há outro tanto tempo a adiar, incapaz de vencer a resistência dos bancos e das instituições de crédito. É que o sector financeiro não quer saber para nada dos dramas humanos. Não é essa a sua função. O sector financeiro quer é explorar as fraquezas humanas. As que dão lucro, está bom de ver. Incluindo a fraqueza dos pais quando confrontados com a fraqueza dos filhos. Citada também pelo DN, a Deco dá casos concretos. »Ir às compras com uma criança significa, muitas vezes, comprar produtos que nem se imaginava existirem. E isso acontece porque as televisões [os fabricantes, digo eu] abusam da publicidade destinada à crianças.»

Venham então as medidas governamentais e quanto mais depressa melhor, embora, pessoalmente, duvide que alguma vez ousem atacar o fundo do problema – a ditadura do mercado.
Tenho dificuldade em imaginar o Governo a pedir aos fabricantes de automóveis, de electrodomésticos, de telemóveis, de jogos electrónicos, de comidas e bebidas garantidas de puro plástico, a pedir a todos os vendilhões de sonhos e de supérfluo que deixem de fazer publicidade – e a pedir aos bancos que deixem de conceder crédito como quem empresta corda a um enforcado…
A pedir e, menos ainda, a exigir. Se exigência houver, receio bem que seja dirigida ao cidadão, despromovido a consumidor e ameaçado com a prisão, para que tenha o bom senso que manifestamente falta a um sistema de mercado que todos os dias professa as suas virtudes – e depois não resiste á sua prática.”


FEYO, José Manuel Barata, “ A nova pirataria”, Grande Reportagem, nº229, 2005, p.10.