A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quinta-feira, novembro 25, 2004

MANICÓMIO

Tempos de medo. Vive o mundo em estado de terror, e o terror disfarça-se: diz ser obra de Saddam Hussein, um actor já cansado de tanto trabalhar de inimigo, ou de Osama bin Laden, assustador profissional.

Mas o verdadeiro autor do pânico planetário chama-se Mercado. Este senhor não tem nada a ver com o estranho lugar do bairro que nos acode em busca de frutas e verduras. É um todo-poderoso terrorista sem rosto, que está em todas as partes, como Deus, e crê ser, como Deus, eterno. Os seus numerosos intérpretes anunciam: "O mercado está nervoso" e advertem: "Não há que irritar o Mercado".

O seu frondoso portuário criminal fá-lo temível. Passou a vida roubando comida, assassinando empregos, sequestrando países e fabricando guerras.

Para vender as suas guerras, o Mercado semeia medo. E o medo cria clima. A televisão ocupa-se de que as torres de Nova Iorque voltem a cair todos os dias. O que restou do pânico do antrax? Não só uma investigação oficial, que pouco ou nada averiguou sobre aquelas cartas mortais: também restou um espectacular aumento do orçamento militar dos Estados Unidos. E os milhões que esse país destina à indústria da morte não é brincadeira. Apenas um mês e meio desses gastos bastaria para acabar com a miséria no mundo, se não mentem os numerozinhos das Nações Unidas.

Cada vez que o Mercado dá ordem, a luz vermelha de alarme pisca no perigosímetro, a máquina que converte toda a suspeita em evidência. As guerras preventivas matam pelas dúvidas, não pelas provas. Agora é a vez do Iraque. Outra vez esse castigado país foi condenado. Os mortos saberão compreender: O Iraque contém a segunda reserva mundial de petróleo, que é precisamente aquilo de que o Mercado precisa para assegurar combustível ao esbanjamento da sociedade de consumo.

Espelho, espelhinho: quem é o mais temido? As potências imperiais monopolizam, por direito natural, as armas de destruição massiva.

Em tempos da conquista da América, enquanto nascia isso que agora chamam de Mercado global, a varíola e a gripe mataram muitos mais indígenas que a espada e o arcabuz. A bem sucedida invasão europeia teve muito que agradecer às bactérias e os vírus. Séculos depois, esses aliados providenciais converteram-se em armas de guerra, nas mãos das grandes potências. Um punhado de países monopoliza os arsenais biológicos. Há duas décadas, os Estados Unidos permitiram que Saddam Hussein lançasse bombas de epidemias contra os curdos, quando ele era um mimado do Ocidente e os curdos tinham má impressão, mas essas armas bacteriológicas haviam sido feitas com linhagens compradas a uma empresa de Rockville, em Maryland.

Em matéria militar, como todo o demais, o Mercado predica a liberdade, mas não gosta nem um bocadinho da competição. A oferta concentra-se nas mãos de poucos, em nome da segurança universal. Saddam Hussein mete muito medo. Apavora o mundo. Tremenda ameaça: o Iraque podería voltar a usar armas bacteriológicas e, muito mais grave ainda, poderia chegar a ter armas nucleares. A humanidade não pode permitir esse perigo, proclama o perigoso presidente do único país que usou armas nucleares para assassinar população civil. Terá sido o Iraque quem exterminou os velhos, mulheres e crianças de Hiroshima e Nagasaki?

Paisagem do novo milênio:

gente que não sabe se amanhã encontrará o que comer, ou se ficará sem tecto, ou como fará para sobreviver se adoecer ou sofrer um acidente;

gente que não sabe se amanhã perderá o emprego, ou se será obrigada a trabalhar o dobro em troca de metade, ou se a sua reforma será devorada pelos lobos da bolsa ou pelos ratos da inflação;

cidadãos que não sabem se amanhã serão assaltados na esquina, ou se lhes tomarão a casa, ou se algum desesperado lhes meterá uma faca na barriga;

camponeses que não sabem se amanhã terão terra para trabalhar e pescadores que não sabem se encontrarão rios ou mares não envenenados ainda;

pessoas e países que não sabem como terão amanhã dinheiro para pagar as suas dívidas multiplicadas pela usura.

Serão obras da Al Qaeda estes terrores quotidianos?

A economia comete atentados que não vêm nos jornais: cada minuto mata de fome 12 crianças. Na organização terrorista do mundo, que o poder militar custodia, há um bilião de famintos crónicos e seiscentos milhões de gordos.

Moeda forte, vida frágil: o Equador e El Salvador adoptaram o dólar como moeda nacional, mas a população foge. Nunca esses países haviam produzido tanta pobreza e tantos emigrantes. A venda de carne humana ao estrangeiro gera desterro, tristeza e divísas. Os equatorianos obrigados a procurar trabalho noutra parte enviaram para o seu país, no ano de 2001, uma quantidade de dinheiro que supera a soma das exportações de banana, camarão, atum, café e cacau.

Também o Uruguai e a Argentina expulsam os seus filhos mais jovens. Os emigrantes, netos de imigrantes, deixam as suas famílias despedaçadas e memórias que doem. "Doutor, partiram-me a alma': em que hospital se cura isso? Na Argentina, um concurso de televisão oferece, todo dia, o prémio mais cobiçado: um emprego. As filas são imensas. O programa elege os candidatos, e o público vota. Consegue trabalho o que mais lágrimas derrama e mais lágrimas arranca. A Sony Pictures está a vender esta fórmula de sucesso em todo o mundo.

Que emprego? O que vier. Por quanto? Por quanto seja e como seja. O desespero dos que buscam trabalho, e a angústia dos que temem perdê-lo, obrigam a aceitar o inaceitável. Em todo o mundo se impõe "o modelo Wal-Mart". A empresa número um dos Estados Unidos proíbe os sindicatos e estica os horários sem pagar horas extras. O mercado exporta o seu lucrativo exemplo. Quanto mais doridos estão os países, mas fácil se torna converter o direito trabalhista em papel molhado.

E mais fácil se torna, também, sacrificar outros direitos. Os pais do caos vendem a ordem. A pobreza e a desocupação multiplicam a delinquência, que difunde o pânico, e nesse caldo de cultivo floresce o pior. Os militares argentinos, que muito sabem de crimes, estão a ser convidados a combater o crime: que venham salvar-nos da delinquência, clama a gritos Carlos Menem, um funcionário do Mercado que de delinquência sabe muito porque a exerceu como ninguém quando foi presidente.

Custos baixíssimos, ganâncias mil, controles zero: um barco petroleiro parte-se pela metade e a mortífera maré negra ataca as costas de Galíza e mais além.

O negócio mais rentável do mundo gera fortunas e desastres "naturais". Os gases venenosos que o petróleo lança ao ar são a causa principal do buraco do ozono, que já tem o tamanho dos Estados Unidos, e da loucura do clima. Na Etiópia e em outros países africanos, a seca está a condenar milhões de pessoas à pior fome dos últimos vinte anos, enquanto que na Alemanha e outros países europeus sofrem inundações que foram a pior catástrofe do último meio século.

Além disso, o petróleo gera guerras. Pobre Iraque.

GALEANO, Eduardo, "Manicómio",Brecha, Montevideu, 7 de Março de2003