A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

segunda-feira, novembro 29, 2004

O que um julgamento justo para Saddam acarretaria

A longa, tortuosa associação entre Saddam Hussein e o Ocidente levanta questões sobre que tópicos - e embaraços - podem vir à superfície em tribunal.

Num (virtualmente inimaginável) julgamento justo para Saddam, um advogado de defesa poderia muito bem chamar a depor Colin Powell, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, George Bush I e outros altos funcionários que forneceram considerável apoio ao ditador, mesmo durante as suas piores atrocidades.

Um julgamento justo aceitaria pelo menos o elementar princípio moral da universalidade: os acusadores e o acusado devem ser sujeitos aos mesmos critérios.

Para um julgamento verdadeiramente justo, é seguramente relevante, tal como uma abundância de registos do Congresso e outros mostram, que Washington fez uma aliança não sagrada com Saddam durante os anos 80.

O pretexto inicial foi que o Iraque quebrou o Irão - que atacou com a protecção dos E.U. - mas esse mesmo apoio continuou bem após a guerra ter terminado.

Agora, os responsáveis pelas políticas de aliança trazem Saddam à barra da justiça.

Rumsfeld, como enviado especial de Ronald Reagan ao Médio Oriente, visitou o Iraque em 1983 e 1984 para estabelecer relações mais fortes com Saddam (ao mesmo tempo, a administração criticava o Iraque pelo uso de armas químicas).

Powell foi o conselheiro nacional de segurança de Bush I, de Dezembro de 1987 a Janeiro de 1989, e uns dias mais tarde tornou-se o presidente da Junta de Chefes do Estado Maior.

Cheney era o secretário de defesa de Bush I.

Assim, Powell e Cheney estavam em posições decisórias de topo no período das piores atrocidades de Saddam, o massacre e gaseamento de Curdos em 1988 e o esmagamento da rebelião xiita em 1991 que o poderia ter derrubado.

Hoje, sob Bush II, Powell, Cheney e outros relembram constantemente essas atrocidades para justificar bater no diabo - acertadamente, embora o elemento crucial do apoio a Saddam pelos E.U. durante este período não seja mencionado.

Em Outubro de 1989, Bush I publicou uma directiva de segurança nacional, declarando que «relações normais entre os Estados Unidos e o Iraque servirão os nossos interesses a longo­‑prazo e promoverão a estabilidade tanto no Golfo como no Médio Oriente.»

Os estados Unidos ofereceram os aprovisionamentos de alimentos subsidiados que o regime de Saddam desesperadamente precisava, juntamente com tecnologia avançada e agentes biológicos adaptáveis a armas de destruição maciça.

Quando Saddam descarrilou e invadiu o Kwait em 1990, as políticas e os pretextos variaram, mas um elemento permaneceu constante: O povo do Iraque não deve controlar o seu país.

Em 1990, as Nações Unidas impuseram sanções económicas ao Iraque, aplicadas principalmente pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Estas sanções, que continuaram com os presidentes Clinton e Bush II, são talvez o mais lamentável legado da política dos E.U. em relação ao Iraque.

Não há ocidentais que conheçam melhor o Iraque do que Denis Halliday e Hans von Sponeck, que serviram lá sucessivamente como coordenadores humanitários das N.U. de 1997 a 2000. Ambos se demitiram em protesto pelas sanções, que Halliday caracterizou como «genocidas.»

Tal como eles e outros apontaram durante anos, as sanções devastaram a população iraquiana enquanto fortaleciam Saddam e a sua clique, aumentando a dependência do povo em relação ao tirano para sobreviver.

Quer se permita ou não que esta história saia cá para fora num tribunal, a questão sobre quem estará à frente do Iraque no futuro permanece crucial e é bastante discutida neste momento.

Aparte desse assunto, aqueles que têm estado preocupados com a tragédia do Iraque tinham três objectivos básicos: (1) derrubar o tirano, (2) acabar com as sanções que atingiam a população, não os governantes, e (3) preservar algo que se assemelhasse a uma ordem mundial.

Não pode haver desacordo entre pessoas decentes sobre os dois primeiros objectivos: Atingi-los é uma ocasião de regozijo, particularmente para aqueles que protestaram contra o apoio dos E.U. a Saddam e, mais tarde, se opuseram ao regime assassino de sanções; eles podem portanto aplaudir sem hipocrisia.

O segundo objectivo podia seguramente ter sido atingido, e possivelmente também o primeiro, sem minar o terceiro.

A administração Bush declarou abertamente a sua intenção de desmantelar o que restava do sistema de ordem mundial e de governar o mundo pela força, com o Iraque como projecto de demonstração.

Essa intenção despertou medo e frequentemente ódio por todo o mundo, e desespero entre aqueles que se preocupam com as consequências prováveis de escolher permanecer cúmplices com as actuas políticas dos E.U. de agressão sem freio. Essa é, claro, uma escolha em grande parte nas mãos do povo norte-americano.
CHOMSKY, Noam,"O que um julgamento justo para Saddam acarretaria", Toronto Star, 25 de Janeiro de 2004. http://pwp.netcabo.pt/0439515501/iraque/iraque2.htm