A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Educando pelo Exemplo

A escola do mundo às avessas é a mais democrática das instituições educativas. Não exige exame de admissão, não cobra matrícula e ministra os seus cursos gratuitamente, a todos e em qualquer lugar, assim na terra como no céu: por alguma razão é filha do sistema que conquistou, pela primeira vez em toda a história da Humanidade, o poder universal.
Na escola do mundo às avessas, o chumbo aprende a flutuar e a cortiça a afundar-se. As víboras aprendem a voar e as nuvens aprendem a rastejar pelos caminhos






Os modelos do êxito


O mundo às avessas premeia às avessas: despreza a honestidade, pune o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Os seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem, é a lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais prestigiados do corpo docente, fala da «taxa natural de desemprego». Por lei natural, provam Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros encontram-se nos degraus mais baixos da escala social. Para explicar o êxito dos seus negócios, John D. Rockfeller costumava dizer que a natureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis; e mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam a acreditar que Charles Darwin escreveu os seus livros para anunciar a glória deles.
Sobrevivência dos mais aptos? A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, é virtude humana quando serve para que as grandes empresas digiram as pequenas e para que os países fortes devorem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando qualquer pobre tipo sem trabalho sai à procura de comida com uma faca na mão. Os doentes da patologia anti-social, loucura e perigo que cada pobre contém, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. Os delinquentes da treta aprendem o que sabem levantando o olhar, a partir de baixo em direcção aos cumes; estudam o exemplo dos triunfadores e, na medida do possível, fazem o que podem para lhes imitarem os méritos. Mas os «lixados» estarão sempre lixados, como dizia Emílio Azcárraga, que foi amo e senhor da televisão mexicana. As possibilidades de um banqueiro que esvazia um banco possa desfrutar em paz, dos frutos do seu trabalho são directamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão que rouba um banco vá parar à prisão ou ao cemitério.
Quando um delinquente mata por alguma dívida por pagar, a execução chama-se ajuste de contas; chama-se plano de ajustamento a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional decide liquidá-lo. A malfeitoria financeira sequestra os países e limpa-os se não pagarem o resgate; quando comparados, qualquer bandido se revela mais inofensivo do que o Drácula debaixo do sol. A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra todos os pobres de todos os países, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos bombistas.
A arte de enganar o próximo, que os vigaristas profissionais praticam caçando desprevenidos pelas ruas, chega a ser sublime quando alguns políticos exercitam o seu talento. Nos subúrbios do mundo, os chefes de Estado vendem os restos de colecção e os retalhos dos seus países a preço de liquidação de final de temporada, tal como nos subúrbios das cidades os delinquentes vendem, a preço vil, o produto dos seus assaltos.
Os pistoleiros que são contratados para matar realizam, em pequena escala o mesmo serviço que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes que são elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes, à coca nas esquinas, desferem golpes que são a versão artesanal dos golpes de sorte assestados pelos grandes especuladores que espoliam multidões a golpes de computador. Os violadores que mais ferozmente violam a natureza e os direitos humanos nunca são presos. Têm as chaves das cadeias. No mundo tal como está, o mundo às avessas, os países que custeiam a paz universal são aqueles que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos restantes países; os bancos mais prestigiados são os que mais narcodólares lavam e os que mais dinheiro roubado guardam; as indústrias mais florescentes são as que mais envenenam o planeta; e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações os que matam mais gente em menos tempo, os que ganham dinheiro com menos trabalho e os que destroem a maior quantidade de Natureza com menos custos.
Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela ansiedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm. O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdida não nos abreviar a existência.
Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível? O mundo ás avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esquecer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o recomenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desânimo que não procure ânimo. Também não há escola que não encontre a sua contra-escola.


GALEANO, Eduardo, De Pernas para o ar, Lisboa, Editorial Caminho,2002.