A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quinta-feira, setembro 23, 2004

Tanto Mar

Luís Nobre Guedes foi no início deste Governo um ministro controverso. Enviaram-no para uma pasta, a do Ambiente, em que não se lhe conhecia a menor preparação: nem duas linhas, nem uma ida a um congresso, nem uma manifestaçãozinha na rua para defender uma espécie em vias de extinção. Veio-se a saber que afinal pertencia a diversas empresas ligadas ao sector na qualidade de advogado. Isso não lhe dá - ao contrário do que pretendiam os zeladores da ortodoxia - a menor competência profissional na área do Ambiente, mas concede alguma oportunidade de ouvir determinadas palavras na matéria.
Teve o azar de lhe cair em cima a questão do incêndio da Galp, elaborando, reconheça-se, com discernimento uma comissão que em pouco dias, e com assinalável limpeza, chegou a conclusões comprometedoras. Mas o modo célere como resolveu o assunto - amplamente elogiado pelo CDS-PP - provocou grande incómodo no Governo, e em particular em Álvaro Barreto. Este declarou que lamentava que Nobre Guedes não tivesse esperado mais três dias.
Como sublinhou Miguel Sousa Tavares, estes três dias são um mistério. Três dias, para quê? Para apagar o fogo? Numa decisão de uma extraordinária imparcialidade, o primeiro-ministro passou o "dossier" para as mãos de Álvaro Barreto, que teve a extraordinária afirmação de que para ele um inquérito nunca está concluído. A afirmação é metafisicamente interessante, mas coloca o problema de sabermos se nesse caso vale a pena criar comissões de inquérito. Luís Nobre Guedes terá perdido em termos de relações de força, mas ganhou em simpatia. Com as anunciadas demolições na Arrábida e na Costa Vicentina (que se prepara para ser devastada pela construção civil), Nobre Guedes tem agora um capital de prestígio.
Mas isto não nos pode fazer esquecer que Nobre Guedes trabalhava para 28 empresas. Era administrador de três, secretário de duas, gerente de três e presidente da mesa da assembleia geral de 20! A gente interroga-se se o país não tem outras pessoas para desempenhar estas funções. Porque o que se prova aqui (e basta vermos o que vem nos jornais todos os dias) é que o mesmo núcleo de pessoas circula de empresa para empresa e de empresa para cargo público e de cargo público para empresa. São sempre os mesmos, uma elite de privilegiados que, ganham, para além das mordomias inerentes, na ordem dos 4000 euros por mês (Nobre Guedes declarou para 2003 a quantia de 457.688 euros).
E quando se está ligado a 28 empresas, será que as conseguimos distinguir? Não corremos o risco de baralhar os nomes, como qualquer Dom Juan de telenovela brasileira? Agora que é ministro, parece que Nobre Guedes ainda arranja uns tempinhos disponíveis para se ocupar apenas de 21 empresas, uma vez que se terá desvinculado de sete. Um pavor. Ainda há quem pense que rico não sofre.
COELHO, Eduardo Prado, "Tanto Mar", Público, 22 de Setembro de 2004