A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sexta-feira, outubro 22, 2004

Obsessões Perigosas

Em lugar do "governo do povo, pelo povo, para o povo", os que nos governam só concebem "o governo da televisão, pela televisão, para a televisão"Num dos seus mais brilhantes e memoráveis discursos, Lincoln considerou que a vitória na batalha de Gettisburg na Guerra Civil americana garantia o "renascimento da liberdade; e o governo do povo, pelo povo, para o povo".Século e meio depois, os anões políticos domésticos não só desconhecem o sentido do conceito de liberdade, como apenas concebem "o governo da televisão, pela televisão, para a televisão". Ou para as rádios. Ou para os jornais. O povo deixou de fazer parte das suas preocupações, apenas lhes interesse o que se mostra ou não ao povo. A política deixou de fazer sentido como serviço público, antes como instrumento de estar ou não "por cima" na comunicação social. Por isso perderam o sentido da proporção, levitam num espaço irreal onde, sem referências, se desdobram em declarações que lembram as baratas encadeadas pela luz forte de um mundo e um povo que não desapareceram e que existem para além dos jornais, das rádios e das televisões.Os novos dislates que ontem Rui Gomes da Silva somou à sua colecção particular de atoardas poderiam, e talvez até devessem, ser ignorados como se ignora a indigência vestida de soberba. Poderiam - mas não podem porque mostram onde chegou o desnorte que reina entre os colaboradores mais directos de Pedro Santana Lopes.É certo que a maioria dos políticos olha para a imprensa e os jornalistas apenas como os que trazem e levam recados (e até há quem a isso se preste). Assim como é certo que o amor pela independência de juízo, coerência e sentido crítico dos comentadores varia conforme o "espírito do tempo". Porém, passar daí ao delírio da cabala, como objectivamente passou o ministro, não ofende apenas os que trabalham nesta casa e no "Expresso": mostra que este não compreende os mecanismos da circulação da informação e pensa que pode controlar o pensamento e domar o pluralismo através da mão invisível das dependências ou do tonitroar das ameaças.Tal não surpreende. Afinal, trata-se de alguém que sempre acompanhou Santana e, como ele, acredita que tudo começa e acaba no espaço do pequeno ecrã, com mais ou menos golpes de mágica. De alguém que não entende que o "mel" do "Pedro" termina no momento em que os números de oratória não têm sequência na acção governativa. De quem, como Santana, se atormenta mais com uma notícia, uma fotografia ou um comentário que lhe é desfavorável do que com as difíceis decisões da boa governação.O exemplo acabado de tal obsessão veio-nos este fim-de-semana do mais alto nível, quando o primeiro-ministro mandou a sua chefe de gabinete desmentir uma sua inocente e, porventura, merecida sesta depois de um debate parlamentar. Churchill, que não dispensava o invejável hábito da sesta, teria desprezado a insignificância da picardia; Santana, a quem falta o essencial - a substância -, perdeu a cabeça pois acredita que fica melhor no papel do "homem que não dorme", zelando pelo país de olhos bem abertos (mesmo enquanto assiste a um desfile da Moda Lisboa...).O ridículo mata. Os dislates pagam-se. Os políticos vão e vêm. Mas a obsessão que estes mostram pelo controlo da informação é perigosa. Pior: eles são perigosos.(E, por hoje, já nem nos referimos ao que também ontem disse Morais Sarmento sobre a independência das estações públicas de radiodifusão...)

FERNANDES, José Manuel,´"Obsessões Perigosas", Público,20 de Outubro de 2004.