A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

segunda-feira, novembro 29, 2004

Utopias

Vamos pôr os nossos olhos para além da infâmia, de modo a descortinar um outro mundo possível. Um mundo onde:

O ar esteja isento de qualquer veneno que não decorra dos temores humanos e das paixões humanas;

Onde, nas ruas, os automóveis sejam esmagados pelos cães;

Onde as pessoas não sejam conduzidas pelo automóvel, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado, nem vistas pela televisão;

Onde o televisor deixe de ser o membro mais importante da família, passando a ser tratado como o ferro de engomar ou a máquina de lavar;

Onde as pessoas trabalhem para viver em vez de viverem para trabalhar;

Onde se inclua no Código Penal o delito de estupidez, delito esse cometido pelos que vivem para possuir ou para ganhar, em vez de viverem, muito simplesmente, para viver, tal como o pássaro canta sem saber que canta e a criança brinca sem saber que brinca;

Onde não se prendam os jovens que se recusem a fazer o serviço militar, mas sim os que queiram fazê-lo;

Onde os economistas deixem de chamar nível de vida ao nível de consumo, deixando de chamar qualidade de vida à quantidade de coisas;

Onde os chefes de cozinha já não pensem que as lagostas adoram ser fervidas vivas;

Onde os historiadores não pensem que os países ficam deleitados quando são invadidos;

Onde os políticos não julguem que os pobres se sentem encantados por andarem a ser sustentados com promessas;

Onde a solenidade deixe de acreditar que é uma virtude e ninguém leve a sério o indivíduo incapaz de se rir de si mesmo;

Onde a morte e o dinheiro percam os seus poderes mágicos e o falecimento ou a fortuna não transformem qualquer canalha num homem cheio de virtudes;

Onde ninguém seja considerado herói ou imbecil por fazer o que pensa ser justo em vez de fazer o que mais lhe convém;

Onde o mundo já não esteja em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a única solução da indústria de armamento consista em abrir falência;

Onde o alimento não seja uma mercadoria e a comunicação um comércio, pelo facto de o alimento e a comunicação serem direitos humanos;
Onde ninguém morra de fome porque ninguém morre de indigestão;

Onde as crianças de rua deixem de ser tratadas como lixo, por ter deixado de haver crianças de rua;

Onde as crianças ricas deixem de ser tratadas como se fossem dinheiro, por ter deixado de haver crianças ricas;

Onde a educação não seja o privilégio daqueles que a podem pagar;

Onde a polícia não seja a maldição dos que não a podem comprar;

Onde a justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, sejam de novo reunidas e passem a andar ombro a ombro;

Onde uma mulher negra seja presidente do Brasil e uma outra mulher negra seja presidente dos Estados Unidos; onde uma índia governe a Guatemala e uma outra o Peru;

Onde, na argentina, as loucas da Praça de Maio sejam um exemplo de saúde mental, por terem recusado o esquecimento no tempo da amnésia obrigatória;

Onde a Santa Madre Igreja corrija os erros das Tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordene que se festeje o corpo;

Onde a Igreja dite um outro mandamento que Deus tinha esquecido: «Amarás a Natureza, de que fazes parte»;

Onde os desertos do mundo e os desertos da alma sejam reflorestados;

Onde se deposite esperança nos desesperados e os perdidos sejam reencontrados, por haverem sido eles que de tanto esperar desesperaram e de tanto procurar se perderam;

Onde sejamos compatriotas e contemporâneos de todos quantos quiserem a justiça e a beleza, independentemente dos sítios onde tenham nascido e do tempo em que hajam vivido, não se atribuindo importância nenhuma às fronteiras da geografia ou do tempo;

Onde a perfeição continue a ser enfadonho privilégio dos deuses, mas onde, neste mundo insano e perdido, cada noite seja vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.

Galeano, Eduardo, Le Monde Diplomatique, Setembro, 2004.

1 Comments:

Blogger Jéssica said...

ahhhhhh
perfeitoooooo ^^

4:19 da manhã

 

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