A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, fevereiro 12, 2005

Lições da sociedade de consumo

O suplício de Tântalo atormenta os pobres. Condenados à sede e à fome, estão também condenados a contemplar os manjares que a publicidade oferece. Quando aproximam a boca ou esticam a mão, essas maravilhas afastam-se. E se apanham alguma, lançando-se ao assalto, vão parar à cadeia ou ao cemitério.
Manjares de plástico, sonhos de plástico.. É de plástico o paraíso que a televisão promete a todos e a poucos concede. Ao seu serviço estamos. Nesta civilização, onde as coisas importam cada vez mais e as pessoas cada vez menos, os fins foram sequestrados pelos meios: as coisas compram-te, o automóvel conduz-te, o computador programa-te e a televisão vê-te.



GLOBALIZAÇÃO, BOBALIZAÇÃO


Até há alguns anos, o homem que não devia nada a ninguém era virtuoso exemplo de honestidade e vida laboriosa. Hoje, é um extraterrestre. Quem não deve não é. Devo, logo existo. Quem não é digno de crédito não merece nome nem rosto: o cartão de crédito prova o direito à existência. Dívidas: isso tem quem nada tem; uma pata metida nessa ratoeira há-de ter qualquer pessoa ou país que pertença a este mundo.
O sistema, transformado em sistema financeiro, multiplica os devedores para multiplicar os consumidores. Dom Karl Marx, que há mais de um século as viu aproximar-se, advertiu para o facto de a tendência para a queda das margens de lucro e a tendência para a superprodução obrigarem o sistema a crescer sem limites e a estender até à loucura o poder dos parasitas da «moderna bancocracia», que definiu como «um bando que não sabe nada de produção nem tem nada a ver com ela».
A explosão do consumo no mundo actual faz mais barulho que todas as guerras e arma mais confusão que todos os Carnavais. Como diz um velho provérbio turco: «quem bebe à conta embebeda-se a dobrar». A farra aturde e turva a visão; esta tão grande bebedeira universal parece não ter limites nem no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, como o tambor, porque é vazia; e na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que tem que pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe são impostas pelo sistema que as gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões precisam de ar, e, por seu turno, precisam que andem de rastos, como andam, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho. O sistema fala em nome de todos, a todos dirige as suas imperiosas ordens de consumo, entre todos difunde a febre compradora; mas nem pensar: para quase todos, esta aventura começa e acaba no ecrã do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, acaba por ter muito mais dívidas para pagar dívidas que geram novas dívidas, e acaba por consumir fantasias que por vezes se materializam a delinquir.(…)

O direito ao esbanjamento, privilégio de poucos, diz ser liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e dir-te-ei quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para crescerem mais depressa. Nas fábricas de ovos, às galinhas também está interdita a noite. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e a angústia de pagar.


POBREZAS

Pobres, pobres a sério são os que não têm tempo para perder tempo.


Pobres, pobres a sério, são os que não têm silêncio, nem podem comprá-lo.


Pobres, pobres a sério, são os que têm pernas que se esquecem de caminhar, como as asas das galinhas se esqueceram de voar.


Pobres, pobres a sério, são os que comem lixo e pagam por ele como se fosse comida.


Pobres, pobres a sério, são os que têm o direito a respirar merda, como se fosse ar, sem pagar nada por ela.


Pobres, pobres a sério, são os que têm mais liberdade que a liberdade de escolher entre um e outro canal de televisão.


Pobres, pobres a sério, são os que vivem dramas passionais com as máquinas.


Pobres, pobres a sério, são os que são sempre muitos e estão sós.


Pobres, pobres a sério, são os que não sabem que são pobres.


GALEANO, Eduardo, “ De pernas para o ar”, Lisboa, editorial Caminho, 2002.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

http://livrodeeduardogaleano.blogspot.com/index.html

8:19 da tarde

 
Anonymous Anónimo said...

http://video.google.com/videoplay?docid=-5188995085015090716&q=um+dia+de+raiva

8:27 da tarde

 

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