A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

terça-feira, março 15, 2005

O Concerto do Lucro

“Nunca como hoje as grandes empresas deram tanto lucro. Neste período de apresentação de resultados, os números estão aí, vindos dos dois lados do Atlântico, a somar-se aos divulgados em Portugal Exemplos concretos? O Citigroup anunciou um lucro recorde de 17 mil milhões de dólares em 2004: no mesmo período, a Renault chegou aos 3,55 mil milhões de euros; só no último trimestre do ano, a petrolífera Mobil ganhou 8,4 mil milhões de dólares. A lista abrange a maioria das empresas cotadas em bolsa nos países industrializados, e os números são tão absurdamente enormes que escapam ao entendimento do comum dos mortais.

Apesar da crise apregoada, as empresas portuguesas participam activamente no concerto do lucro. Os supermercados declaram resultados líquidos que ultrapassam de longe os do ano anterior, os CTT pura e simplesmente duplicam os seus lucros e os benefícios da EDP e dos bancos privados, explodem para cima. Por seu turno, a Portugal Telecom, cujos lucros foram em 2004, mais do dobro de 2003, «vai gastar 250 milhões de euros para abater mil postos de trabalho», segundo noticia o Público. Por todo o lado, a constante é a mesma, indecente e perversa: os lucros crescem ao mesmo ritmo que aumenta o desemprego!

Em Portugal, a taxa de desempregados ultrapassa os 7% e atinge o ponto mais alto da última década. Só em Janeiro, o cortejo degradante dos desempregados foi engrossado por quinhentos portugueses. Cada dia, todos os dias. E, neste domínio, Portugal está melhor que a média da EU, o espaço político-económico mais invejado no mundo: 8,8% da população está no desemprego. Acima desta média situam-se a Alemanha e a França, os ricos entre os ricos. A injustiça social não é, portanto, especificamente portuguesa, mas antes a consequência inevitável e visível do ultraliberalismo económico em voga.

Num texto sobre o mercado de trabalho face à globalização, a ONU considera que o emprego precário e o trabalho clandestino são os motores da economia paralela. Trata-se de «uma estratégia de sobrevivência que, por regra, implica um grau de pobreza e de marginalização social que exclui os trabalhadores de qualquer forma de protecção social ou jurídica». Muitos destes sobreviventes «executam o trabalho que anteriormente era feito por trabalhadores pertencentes aos quadros das empresas. Daí resulta que um número sem precedentes de pessoas(…) tenha menos segurança de emprego do que alguma vez teve e tenha menos acesso a assistência caso o seu trabalho acabe ou a sua saúde se deteriore».

Lucro e desemprego…Estaremos a falar da mesma humanidade? Para onde vai todo o dinheiro gerado à custa de desemprego e de ameaças à solidariedade social, à saúde e às pensões de reforma? É reinvestido pelas empresas de modo a criar mais riqueza e mais postos de trabalho ou gasto em aumentos salariais dos seus empregados? Claro que não! O lucro está ao serviço de si próprio. Dos benefícios do banco francês BNP Parisbas, 43 milhões de euros vão para aumentos de ordenado, enquanto 486 milhões são distribuídos aos accionistas, sob forma de dividendos. É a regra no mercado global…

Como se este desfasamento brutal na distribuição da riqueza não bastasse, metade dos capitais da bolsa francesa são detidos por accionistas estrangeiros, sobretudo norte-americanos. É portanto para eles que vai metade do fruto do trabalho dos franceses – dos franceses que ainda têm emprego, entenda-se. E em Portugal? Em nome dos interesses de que é que as empresas lucrativas cotadas na bolsa abatem postos de trabalho?

Numa análise com o título premonitório «Um capitalismo sem projectos», o economista Patrick Artus conclui que «se os lucros não geram os investimentos de amanhã e os empregos de depois de amanhã, mas servem apenas para distribuir dinheiro aos accionistas, a utilidade de lucros elevados não é evidente». Certamente que não. Mas é evidente que foi porque o capital servia somente para gerar capital e o trabalho para gerar miséria que o marxismo se impôs a metade do mundo. Resignados ou revoltados, é bom não o esquecer.”

FEYO, José Manuel Barata, “O concerto do lucro”, Grande Reportagem, nº218, 2005.