A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quarta-feira, março 23, 2005

Terrorismo de Estado ou as novas "Operações Condor"?

"Rendições,os raptos da CIA"

"Um líder religioso egípcio radical, conhecido como Abu Omar, encaminhava-se para as orações da tarde, em Fevereiro de 2003, quando foi agarrado no passeio por dois homens que o atacaram com "spray" e o meteram numa carrinha. Não se soube dele desde então. No entanto, investigadores de Milão parecem estar agora perto de identificar os seus raptores. O mês passado, responsáveis apareceram na base área de Aviano (Itália) e pediram registos de todos os aviões americanos que tenham voado para ou da instalação militar conjunta americana-italiana por volta da altura do rapto. Também pediram os registos dos veículos que entraram na base. As autoridades italianas suspeitaram de que o Egipto era o alvo de uma operação patrocinada pela CIA [agência de espionagem dos Estados Unidos da América] conhecida como "Rendição", em que os suspeitos de terrorismo são levados à força para países para onde a tortura é praticada.
O inquérito italiano é uma das três investigações oficiais a "rendições" que terão ocorrido na Europa Ocidental e que vieram à tona no ano passado. Ainda que a CIA realize normalmente operações com a bênção ou a ajuda dos serviços secretos dos países onde actua, as autoridades italianas, alemãs e suecas estão a verificar se agentes norte-americanos terão desrespeitado leis locais detendo suspeitos de terrorismo em solo europeu e sujeitando-os a abuso ou maus tratos. A CIA tem mantido os pormenores dos casos de "Rendição" um segredo bem guardado, mas defendeu já a prática como um meio legal e eficaz de prevenir o terrorismo. Há espiões que vêm admitindo o recurso a esta táctica com mais frequência desde os ataques de 11 de Setembro de 2001. A Administração [do Presidente George W.] Bush recebeu o apoio para a execução de operações "Rendição" de governos que têm sido criticados pelo seu currículo em termos de direitos humanos, como o Egipto, a Jordânia e o Paquistão, para onde muitos dos suspeitos são levados para serem interrogados. Deputados e magistrados europeus questionam se a prática não é uma evidente violação das soberanias locais e dos direitos humanos.
Há muitos obstáculos práticos e legais à acusação de agentes norte-americanos, incluindo a questão de estarem protegidos por imunidade diplomática. No entanto, os magistrados dos ministérios públicos em Itália e na Alemanha não excluíram apresentar queixas-crime. As investigações europeias estão, ao mesmo tempo, a levar a novas revelações sobre a suspeita de envolvimento norte-americano no desaparecimento de cinco homens - não incluindo o egípcio -, cada um deles dizendo que foi vítima de abusos físicos e mais tarde torturado. Na Alemanha, um homem de 41 anos, Khaled Masri, disse às autoridades que esteve fechado durante umas férias nos Balcãs e que depois foi levado de avião para Cabul, no Afeganistão, em Janeiro de 2004. Ali foi detido como suspeito de terrorismo durante quatro meses. Depois de os seus captores perceberem que não era o suspeito da Al-Qaeda que procuravam, foi levado de novo para os Balcãs, tendo sido abandonado numa encosta na fronteira albanesa. Masri lembra-se de que os seus captores falavam inglês
com sotaque americano. Os magistrados alemães, depois de alguns meses a analisar este relato, confirmaram várias partes essenciais da história e estão a investigá-la como rapto. "Até agora, não vimos qualquer sinal de que o que ele está a dizer é incorrecto", disse Martin Hofmann, um investigador de Munique que está a supervisionar o inquérito. "Tenho tentado encontrar os que o detiveram, que o torturaram, e quem foi responsável por isto", acrescentou
o investigador. Na Suécia, uma investigação parlamentar descobriu que agentes da CIA encapuzados orquestraram a saída forçada do país, em Dezembro de 2001, de dois egípcios, num avião registado nos EUA que voou para o Cairo, onde os homens alegam que foram torturados na prisão. Mais tarde, um dos homens foi ilibado da suspeita de terrorismo pelas autoridades egípcias, enquanto o outro continua detido no Egipto. Detalhes da operação secreta deixaram muitas pessoas chocadas na Suécia, um país empenhado na defesa dos direitos humanos. Ainda que as autoridades suecas tivessem secretamente convidado a CIA a ajudar na operação, as revelações fizeram com que o director da polícia de segurança sueca prometesse que a sua agência nunca mais iria deixar agentes estrangeiros tomar conta de um caso destes. "No futuro, vamos usar as leis suecas, medidas suecas e aviação militar sueca quando deportarmos terroristas", disse aos jornalistas Klas Bergenstrand, o chefe da polícia de segurança. "Desse modo, podemos ter controlo completo de toda a situação."
Em Milão, o líder religioso nascido no Egipto atraiu a atenção da polícia antiterrorismo logo após a sua chegada a Itália, em 1997, vindo da Albânia. Conhecido como Abu Omar, o seu nome completo era Hassan Mustafa Osama Nasr. Tinha 42 anos, era um veterano combatente das guerras na Bósnia e no Afeganistão e um homem procurado pelas autoridades no Egipto, onde era acusado de pertencer a um grupo radical ilegal. Nasr rezava frequentemente em duas mesquitas em Milão que atraíam, desde há muito, extremistas religiosos e políticos, de acordo com responsáveis italianos e americanos. Uma das mesquitas, uma garagem modificada na Viale Jenner, é classificada como financiadora de terrorismo pelo Departamento do Tesouro dos EUA, que a acusou de apoiar "o movimento de armas, homens e dinheiro pelo mundo". Nasr reforçou a reputação da mesquita fazendo sermões revoltados contra a invasão norte-americana do Afeganistão e distribuindo panfletos criticando a política americana no Médio Oriente. A polícia antiterrorismo italiana pôs o seu telefone sob escuta e manteve-o sob vigilância. "Era o tipo de pessoa que não falava de modo diplomático", comentou Abdelhamid Shaari, presidente do Centro Cultural Islâmico na Viale Jenner, que nega que a mesquita apoie o terrorismo ou qualquer actividade ilegal. "Quando atacava a América, não estava com meias medidas. Ia direito ao assunto", frisou Shaari. Quando Nasr desapareceu, a sua família e a mesquita fizeram queixa do seu rapto, depois de uma testemunha ter afirmado que vira tudo. A testemunha, uma imigrante recente, disse estar demasiado assustada para repetir a sua história à polícia, levando alguns investigadores a sugerir que Nasr tinha ido para o Iraque combater as forças americanas.
A polícia dos EUA abriu uma investigação, mas o caso ficou parado durante mais de um ano. Isso mudou em Abril de 2004, quando a mulher de Nasr recebeu uma chamada telefónica do seu marido. Disse-lhe que tinha sido raptado e levado para uma base aérea norte-americana em Itália. A chamada foi gravada pela polícia italiana, que tinha mantido o telefone de casa de Nasr sob vigilância. Ainda que as transcrições não tenham sido divulgadas, os companheiros de Nasr na mesquita disseram que ele contou que tinha sido torturado e mantido nu a temperaturas abaixo de zero numa prisão no Cairo.
Durante a conversa telefónica, Nasr disse à mulher que o deixaram sair da prisão no Egipto, mas continuava sob prisão domiciliária. Os seus familiares acreditaram que teria sido novamente preso depois de pormenores da sua conversa terem sido divulgados em jornais italianos. A existência da escuta telefónica é atestada em documentos de tribunal selados, vistos pelo "The Washington Post". Os documentos, datados da Primavera de 2004, incluíam uma autorização de um juiz para prosseguir a escuta e mostram que os investigadores seguiam a pista que revelava que agentes à paisana (possivelmente norte-americanos, italianos ou egípcios) estavam por trás do rapto. Desde então, investigadores italianos apuraram que 15 agentes, alguns deles operacionais da CIA, estiveram envolvidos no rapto de Nasr, de acordo com o "Corriere della Sera", um importante diário italiano. Os investigadores conseguiram detectar a origem de chamadas feitas pelos agentes fazendo ligações com telefonemas realizados através dos mesmos telefones perto da mesquita e da base aérea de Aviano no dia em que Nasr desapareceu, relatava o jornal italiano. A investigação está a ser liderada por Armando Spataro, um magistrado do Ministério Público italiano que se tornou conhecido, ao conseguir condenações em casos envolvendo a máfia e a corrupção política. Spataro, que no passado já trabalhou com responsáveis norte-americanos em casos de terrorismo, confirmou que visitou Aviano em Fevereiro, mas não quis fazer mais comentários. O capitão Eric Elliott, um porta-voz militar norte-americano em Aviano, disse que Spataro se encontrou durante várias horas com responsáveis italianos, que depois encaminharam um pedido dos registos aos seus homólogos americanos. Citando uma "investigação em curso", Eric Elliott não aceitou adiantar mais pormenores. A embaixada norte-americana em Roma recusou também responder a questões sobre os agentes americanos e o desaparecimento de Nasr. "Não comentamos assuntos de espionagem", disse Ben Duffy, um porta-voz da embaixada. Deputados da oposição italiana pediram esclarecimentos ao primeiro-ministro, Sílvio Berlusconi, sobre a possibilidade de agentes ou serviços secretos italianos terem tido um papel no rapto. Mas os ministros do Governo têm-se mantido silenciosos. Shaari, o director do Centro Islâmico Cultural em Milão, declarou que alguns muçulmanos estão com medo de também serem raptados. "Se puderam levar Abu Omar, então podem levar qualquer um", afirmou. "É um precedente extremamente perigoso, tanto para a comunidade muçulmana como para a Itália, como Estado livre e democrático."
No final de Dezembro de 2003, Khaled Masri envolveu-se numa discussão azeda com a mulher quando ia a caminho da cidade de Ulm, na Alemanha. O casal concordou que Masri deveria ausentar-se por uns dias, por isso ele comprou um bilhete de autocarro para Skopje, na Macedónia. Na fronteira macedónia, na véspera de fim de ano, funcionários da imigração olharam duas vezes para o seu passaporte e detiveram-no, sem explicações. Mais tarde, outros agentes interrogaram-no e pressionaram-no a admitir que era membro da Al-Qaeda, de acordo com relatos de Masri aos seus advogados e aos investigadores alemães. Masri clamou inocência, mas foi mantido sob guarda na Macedónia durante três semanas. Disse que num dia no final de Janeiro de 2004 foi espancado, despido, amarrado e colocado num avião que o levou ao Afeganistão. Aí, foi posto numa cela sob condições terríveis, privado de água e repetidamente interrogado. Só depois de ter feito uma greve de fome, disse, os seus captores cederam; foi levado de volta aos Balcãs em Maio de 2004. Masri disse ter sido libertado perto de um "checkpoint" na fronteira albanesa, onde guardas lhe devolveram o passaporte e o dinheiro. Quando chegou a casa, até a mulher estava relutante em acreditar na sua história, pensando que o marido a teria trocado por outra mulher, contou o seu advogado. A polícia alemã interrogou Masri várias vezes e concluiu que a sua versão dos acontecimentos era consistente e verosímil. Os carimbos no passaporte mostram que entrou na Macedónia e deixou a Albânia nas alturas descritas. O condutor do autocarro que se dirigia a Skopje confirmou aos investigadores que Masri tinha estado a bordo e que tinha sido levado por guardas da fronteira. Os investigadores conduziram uma análise química do cabelo de Masri, afirmando que os resultados apoiam a sua versão de que sofreu de malnutrição enquanto esteve cativo. O registo de voos também corrobora a história de Masri de ter sido levado de avião para fora da Macedónia por agentes dos serviços secretos norte-americanos. Os registos mostram que um Boeing registado nos Estados Unidos chegou a Skopje às 9h da manhã no dia 23 de Janeiro de 2004 e partiu cerca de seis horas depois. Masri tinha dado aos investigadores alemães a mesma data e horários. O plano de voo mostra que a aeronave tinha como destino Cabul, mas acabou por ser modificado de modo a incluir uma paragem em Bagdad (Iraque). A existência dos registos do voo foi primeiro difundida pelo Frontal 21, um programa de informação na televisão alemã ZDF. O "Washington Post" obteve uma cópia dos registos. O jacto, com o número N313P, estava registado na altura numa empresa americana, a Premier Executive Transport Services Inc., que os registos sugerem que seja uma empresa encoberta da CIA. A mesma empresa tem uma outra aeronave que foi utilizada noutros casos de "Rendição", incluindo um na Suécia. O advogado de Masri e os investigadores consideram que ele foi raptado, porque o seu nome é semelhante ao de um suspeito da Al-Qaeda, Khalid Masri, que terá alegadamente desempenhado um papel crucial a convencer os membros da célula de Hamburgo que realizaram os ataques de 11 de Setembro a irem para o Afeganistão, onde conheceram Osama bin Laden. Manfred Gnjidic, o advogado, diz que pediu à embaixada norte-americana em Berlim uma explicação sobre o que aconteceu, mas não recebeu qualquer resposta. "Temos bastantes certezas sobre quem está por trás disto", declarou Gnjidic. "Estamos a tentar responsabilizar alguém para o castigar." Robert Wood, um porta-voz da embaixada, recusou-se a responder a questões específicas sobre o caso. "Mas a nossa política é bastante clara. Os Estados Unidos não transferem detidos para países onde acreditemos que é mais provável que sejam torturados", disse. Os responsáveis macedónios também não tinham muito a dizer. "A nossa resposta é: não comentamos", disse Goran Pavlovski, o porta-voz do Ministério macedónio do Interior. "Se os alemães querem informação, deveriam pedir, e nós responderemos." Segundo a legislação alemã, os magistrados do Ministério Público têm autoridade para investigar qualquer crime cometido contra um cidadão alemão, mesmo em território estrangeiro.
Hofmann, o magistrado do Ministério Público de Munique, reconheceu que tem poderes limitados para investigar casos fora da Alemanha. Mas disse que estava a preparar um pedido formal de ajuda do Governo macedónio, assim como das autoridades afegãs e albanesas. "Estou confiante de que vamos ter mais informação", disse. E acrescentou: "Este caso tem um considerável significado político. Há uma certa dose de pressão em toda a gente envolvida."
MAIS INFORMAÇÕES aqui , aqui e aqui
*WHITLOCK, Craig, "Rendições, os raptos da CIA", Revista Pública, 20 de Março de 2005,nº460.
*Com Julie Tate Exclusivo PÚBLICO/"The Washington Post"