quinta-feira, abril 12, 2007
Direito ao delírio
"Já está a nascer o novo milénio. Não dá para levar muito a sério o assunto: afinal, o ano 2001 dos cristãos é o ano 1421 dos muçulmanos, o 5114 dos maias e o 5761 dos judeus. O novo milénio nasce num 1.º de Janeiro por obra e graça de um capricho dos senadores do Império Romano, que um bom dia decidiram quebrar a tradição que mandava celebrar o ano novo no começo da primavera. E a conta dos anos da era cristã deriva de outro capricho: um bom dia, o papa de Roma decidiu datar o nascimento de Jesus, embora ninguém saiba quando nasceu. O tempo zomba dos limites que lhe atribuímos para crer na fantasia de que nos obedece; mas o mundo inteiro celebra e teme essa fronteira.
Milénio vai, milénio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.
Verdade seja dita, não há quem resista: numa data assim, por arbitrária que seja, qualquer um sente a tentação de se perguntar como será o tempo que será. E vá-se lá saber como será. Temos uma única certeza: no século XXI, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milénio passado.
Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
o ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das humanas paixões;
nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães;
as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor;
o televisor deixará de ser o mais importante membro da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;
as pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar;
será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar o serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo;
os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;
os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de ser servidas vivas;
os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos;
os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;
ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério;
a morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro;
ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;
o mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência;
a comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua;
os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos;
a educação não será privilégio de quem possa pagá-la;
a polícia não será o terror de quem não possa comprá-la;
a justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;
uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru;
na Argentina as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória;
a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo;
a Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte";
serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;
os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar;
seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;
a perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como fosse o primeiro."
GALEANO,Eduardo,"De pernas para o ar - A escola do mundo às avessas".