A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, janeiro 29, 2005

Palestina

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sexta-feira, janeiro 28, 2005

A essência do Neoliberalismo

O mundo económico é realmente, como pretende o discurso dominante, uma ordem pura e perfeita, desenvolvendo implacavelmente a lógica das suas consequências previsíveis, e disposto a reprimir todas as transgressões com as sanções que inflige, seja de forma automática, seja – mais excepcionalmente – por mediação dos seus braços armados, o FMI ou a OCDE, e das políticas que estes impõem: redução do custo da mão­‑de­‑obra, restrição das despesas públicas e flexibilização do mercado de trabalho? E se não fosse, na realidade, mais do que a posta em prática de uma utopia, o neoliberalismo, desse modo convertida em programa político, mas uma utopia que, com a ajuda da teoria económica de que se reclama, chega a pensar­­‑se como a descrição científica do real?

Esta teoria tutelar é uma pura ficção matemática, baseada, desde a sua origem, numa formidável abstracção: a que, em nome duma concepção tão estreita como estrita da racionalidade, identificada com a racionalidade individual, consiste em pôr entre parênteses as condições económicas e sociais das orientações racionais e das estruturas económicas e sociais que são a condição do seu exercício.

Para perceber a dimensão destes aspectos omitidos, basta pensar no sistema de ensino, que nunca é tido em conta enquanto tal num momento em que desempenha um papel determinante na produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores. Desta espécie de pecado original, inscrito no mito walrasiano [1] da “teoria pura”, derivam todas as carências e todas as ausências da disciplina económica, e a obstinação fatal com que se apega à oposição arbitrária a que dá lugar, pela sua mera existência, entre a lógica propriamente económica, baseada na concorrência e portadora de eficácia, e a lógica social, submetida à regra da equidade.

Dito isto, esta “teoria” originariamente dessocializada e deshistorizada tem, hoje mais do que nunca, os meios de se converter em verdade, empiricamente verificável. Com efeito, o discurso neoliberal não é um discurso como os outros. À maneira do discurso psiquiátrico no asilo, segundo Erving Goffman [2], é um “discurso forte”, que só é tão forte e tão difícil de combater porque dispõe de todas as forças de um mundo de relações de força que ele contribui a formar tal como é, sobretudo orientando as opções económicas daqueles que dominam as relações económicas e somando assim a sua própria força, propriamente simbólica, a essas relações de força. Em nome desse programa científico de conhecimento, convertido em programa político de acção, leva­‑se a cabo um imenso trabalho político (negado já que, em aparência, puramente negativo) que trata de criar as condições de realização e de funcionamento da “teoría”; um programa de destruição metódica dos colectivos.

O movimento, tornado possível pela política de desregulamentação financeira, no sentido da utopia neoliberal dum mercado puro e perfeito, realiza­‑se através da acção transformadora e, há que dizê­‑lo, destruidora de todas as medidas políticas (cuja mais recente é o AMI, Acordo Multilateral de Investimentos, destinado a proteger as empresas estrangeiras e os seus investimentos contra os Estados nacionais), visando pôr em questão todas as estruturas colectivas capazes de colocar obstáculos à lógica do mercado puro: a nação, cuja margem de manobra não cessa de diminuir; os grupos de trabalho, com, por exemplo, a individualização dos salários e das carreiras em função das competências individuais e a atomização dos trabalhadores que daí resulta; os colectivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; a própria família, que, através da constituição de mercados por classes de idade, perde uma parte do seu controlo sobre o consumo.

O programa neoliberal, que extrai a sua força social da força político-económica daqueles cujos interesses expressa – accionistas, operadores financeiros, industriais, políticos conservadores ou social­‑democratas convertidos à deriva cómoda do laisser­‑faire, altos executivos das finanças, tanto mais encarniçados em impor uma política que prega o seu próprio ocaso quanto, à diferença dos técnicos superiores das empresas, não correm o perigo de pagar, eventualmente, as suas consequências –, tende a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais, e a construir deste modo, dentro da realidade, um sistema económico ajustado à descrição teórica, quer dizer, uma espécie de máquina lógica, que se apresenta como uma cadeia de restrições que arrastam os agentes económicos.

A mundialização dos mercados financeiros, em conjunto com o progresso das técnicas de informação, garante uma mobilidade de capitais sem precedentes e proporciona aos investidores, preocupados com a rentabilidade a curto prazo dos seus investimentos, a possibilidade de comparar de maneira permanente a rentabilidade das maiores empresas e de sancionar em consequência os fracassos relativos. As próprias empresas, colocadas sob uma tal ameaça permanente, devem ajustar­‑se de forma mais ou menos rápida às exigências dos mercados; isso sob pena, como alguém disse, de «perder a confiança dos mercados», e, ao mesmo tempo, o apoio dos accionistas que, ansiosos por uma rentabilidade a curto prazo, são cada vez mais capazes de impor a sua vontade aos managers, de lhes fixar normas, através das direcções financeiras, e de orientar as suas políticas em matéria de contratação, de emprego e de salários.

Deste modo instaura­‑se o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos sob contratos temporários ou os substitutos temporários ou os “planos sociais” reiterados, e, no próprio seio da empresa, a concorrência entre filiais autónomas, entre equipas constrangidas à polivalência e, finalmente, entre indivíduos, através da individualização da relação salarial: fixação de objectivos individuais; entrevistas individuais de avaliação; avaliação permanente; subidas individualizadas de salários ou concessão de prémios em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de “responsabilização” tendentes a assegurar a autoexploração de certos técnicos superiores que, meros assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis das suas vendas, dos seus produtos, da sua sucursal, do seu armazém, etc., como se fossem “independentes”; exigência de “autocontrolo” que estende a “implicação” dos assalariados, segundo as técnicas da “gestão participativa”, muito mais além dos empregos de técnicos superiores. Técnicas todas elas de dominação racional que, em tudo impondo o superinvestimento no trabalho, concorre a debilitar ou a abolir as referências e as solidariedades colectivas [3].

A instituição prática de um mundo darwinista de luta de todos contra todos, em todos os níveis da hierarquia, que encontra as dinâmicas da adesão à tarefa e à empresa na insegurança, no sofrimento e no stress, não poderia triunfar tão completamente, sem dúvida, se não contasse com a cumplicidade das disposições precarizadas que produzem a insegurança e a existência, em todos os níveis da hierarquia, e mesmo nos níveis mais elevados, especialmente entre os técnicos superiores, de um exército de reserva de mão­‑de­‑obra docilizada pela precarização e pela ameaça permanente do desemprego. O fundamento último de toda esta ordem económica colocada sob o signo da liberdade é, com efeito, a violência estrutural do desemprego, da precariedade e da ameaça de despedimento que ela implica: a condição do funcionamento “harmonioso” do modelo micro-económico individualista é um fenómeno de massas, a existência do exército de reserva dos desempregados.

Esta violência estrutural pesa também sobre o que chamamos o contrato de trabalho (sabiamente racionalizado e desrealizado pela “teoria dos contratos”). O discurso de empresa nunca falou tanto de confiança, de cooperação, de lealdade e de cultura de empresa como numa época em que se obtém a adesão de cada instante fazendo desaparecer todas as garantias temporais (três quartas partes dos contratos são temporais, a parte dos empregos precários não cessa de aumentar, o despedimento individual tende a não estar mais submetido a nenhuma restrição).

Vemos assim como a utopia neoliberal tende a encarnar­‑se na realidade de uma espécie de máquina infernal, cuja necessidade se impõe aos próprios dominadores. Como o marxismo noutros tempos, com o qual, neste aspecto, tem muitos pontos em comum, esta utopia suscita uma formidável crença, a free trade faith (a fé no livre comércio), não só entre os que vivem dela materialmente, como os financeiros, os patrões das grandes empresas, etc., mas também entre os que extraem dela a sua razão de existir, como os altos executivos e os políticos, que sacralizam o poder dos mercados em nome da eficácia económica, que exige o levantamento das barreiras administrativas ou políticas susceptíveis de importunar os detentores de capitais na busca puramente individual da maximização do benefício individual, instituída em modelo de racionalidade, que querem bancos centrais independentes, que pregam a subordinação dos Estados nacionais às exigências da liberdade económica para os amos da economia, com a supressão de todas as regulamentações em todos os mercados, a começar pelo mercado de trabalho, a interdição dos défices e da inflação, a privatização generalizada dos serviços públicos e a redução das despesas públicas e sociais.

Sem partilhar necessariamente os interesses económicos e sociais dos verdadeiros crentes, os economistas têm suficientes interesses específicos no campo da ciência económica para trazer uma contribuição decisiva, quaisquer que sejam os seus estados de alma a respeito dos efeitos económicos e sociais da utopia que eles vestem de razão matemática, à produção e à reprodução da crença na utopia neoliberal. Separados por toda a sua existência e, sobretudo, por toda a sua formação intelectual, quase sempre puramente abstracta, livresca e teoricista, do mundo económico e social tal como ele é, eles são particularmente inclinados a confundir as coisas da lógica com a lógica das coisas.

Confiando em modelos que praticamente nunca tiveram a oportunidade de submeter à prova da verificação experimental, propensos a olhar de cima os logros das outras ciências históricas, nas quais não reconhecem a pureza e a transparência cristalina dos seus jogos matemáticos, e das quais eles são quase sempre incapazes de compreender a verdadeira necessidade e a profunda complexidade, participam e colaboram numa formidável transformação económica e social que, mesmo se algumas das suas consequências lhes causam horror (podem contribuir para o Partido socialista e dar conselhos avisados aos seus representantes nas instâncias de poder), não lhes pode desagradar pois que, sob o risco de alguns falhanços, imputáveis nomeadamente ao que eles chamam por vezes “bolhas especulativas”, tendem a dar realidade à utopia ultraconsequente (como certas formas de loucura) à qual consagram a sua vida.

E contudo o mundo está aí, com os efeitos imediatamente visíveis da posta em prática da grande utopia neoliberal: não apenas a miséria de uma fracção cada vez maior das sociedades mais avançadas economicamente, o crescimento extraordinário das diferenças entre os rendimentos, o desaparecimento progressivo dos universos autónomos de produção cultural, cinema, edição, etc., pela imposição intrusiva dos valores comerciais, mas também e sobretudo a destruição de todas as instâncias colectivas capazes de contrabalançar os efeitos da máquina infernal, à cabeça das quais o Estado, depositário de todos os valores universais associados à ideia de público, e a imposição, generalizada, nas altas esferas da economia e do Estado, ou no seio das empresas, desta espécie de darwinismo moral que, com o culto do winner, formado nas matemáticas superiores e no salto elástico, instaura como normas de todas as práticas a luta de todos contra todos e o cinismo.

Podemos esperar que a massa extraordinária de sofrimento que produz semelhante regime político-económico esteja um dia na origem de um movimento capaz de parar a corrida para o abismo? De facto, estamos aqui perante um extraordinário paradoxo: enquanto os obstáculos encontrados no caminho da realização da nova ordem – a do indivíduo só, mas livre – são hoje considerados como imputáveis a rigidezes e a arcaísmos, e enquanto qualquer intervenção directa e consciente, pelo menos quando vem do Estado, sob que aspecto for, é desacreditada de antemão, logo destinada a desaparecer em benefício de um mecanismo puro e anónimo, o mercado (do qual se esquece com frequência que é também o lugar do exercício de interesses), é na realidade a permanência ou a sobrevivência das instituições e dos agentes da antiga ordem em vias de desmantelamento, e todo o trabalho de todos as categorias de trabalhadores sociais, e também todas as solidariedades sociais, familiares ou outras, que fazem com que a ordem social não se afunde no caos, malgrado o volume crescente da população precarizada.

A passagem ao “liberalismo” realiza­‑se de maneira insensível, logo imperceptível, como a deriva dos continentes, ocultando assim aos olhares os seus efeitos, os mais terríveis a longo prazo. Efeitos que se encontram também, paradoxalmente, dissimulados pelas resistências que suscita, desde logo, da parte dos que defendem a ordem antiga bebendo nas fontes que encerrava, nas antigas solidariedades, nas reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente da queda na anomia. (Capital que, se não é renovado, reproduzido, está votado ao deperecimento, mas cujo esgotamento não é para amanhã).

Mas essas mesmas forças de “conservação”, que são fáceis de tratar como forças conservadoras, são também, sob outro nexo, forças de resistência contra a instauração da nova ordem, que podem terminar sendo forças subversivas. E se podemos consequentemente conservar alguma esperança razoável, é porque existem ainda, nas instituições estatais e também nas disposições dos agentes (em especial, os mais vinculados a essas instituições, como a pequena aristocracia funcionarial), tais forças que, sob a aparência de defender simplesmente – como serão imediatamente acusados – uma ordem desaparecida e os “privilégios” correspondentes, devem de facto, para resistir à prova, trabalhar para inventar e construir uma ordem social que não tenha por única lei a busca do interesse egoísta e a paixão individual do lucro, e que prepare o caminho a colectivos orientados no sentido da busca racional de fins colectivamente elaborados e aprovados.

Entre estes colectivos, associações, sindicatos, partidos, como não atribuir um lugar especial ao Estado, Estado nacional ou, melhor ainda, supranacional, quer dizer, europeu (etapa para um Estado mundial), capaz de controlar e de tributar eficazmente os lucros obtidos nos mercados financeiros e, sobretudo, de contrabalançar a acção destruidora que estes últimos exercem sobre o mercado de trabalho, organizando, com a ajuda dos sindicatos, a elaboração e a defesa do interesse público que, quer se queira quer não, não sairá nunca, nem sequer ao preço de algumas falsidades de escrita matemática, da visão do contabilista (noutra época diríamos do “merceeiro”) que a nova crença apresenta como a forma suprema da realização humana.

BOURDIEU, Pierre, "A essência do neoliberalismo", Le Monde Diplomatique, Março de 1998.

segunda-feira, janeiro 24, 2005

bom

O outro Tsunami, fabricado pelo Homem

Os cruzados ocidentais, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, estão a dar às vítimas do tsunami uma ajuda inferior ao custo de um bombardeiro Stealth ou de uma semana da sangrenta ocupação do Iraque. O gasto com a festa que se aproxima da tomada de posse de George Bush reconstruiria grande parte da linha costeira do Sri Lanka. Bush e Blair aumentaram as suas primeiras gotas de “ajuda” só quando ficou claro que pessoas de todo o mundo estavam espontaneamente a oferecer milhões e se anunciava um problema de relações públicas. A actual contribuição “generosa” do governo de Blair é um dezasseis avos dos 800 milhões de libras que gastou com o bombardeamento do Iraque antes da invasão e cerca de um vigésimo da doação de 1000 milhões de libras, conhecida como empréstimo suave [soft loan], aos militares indonésios a fim de que pudessem adquirir caças-bombardeiros Hawk.

Em 24 de Novembro, um mês antes do abalo do tsunami, o governo Blair deu o seu apoio a uma feira de armas em Djakarta «concebida para ir ao encontro de uma necessidade urgente das forças armadas [indonésias] de reverem as suas capacidades de defesa», relatou o Jakarta Post. Os militares indonésios, responsáveis pelo genocídio em Timor Leste, mataram mais de 20.000 civis e “insurrectos” em Aceh. Entre os expositores na feira de armas estava a Rolls Royce, fabricante dos motores para os Hawks, os quais, juntamente com os veículos blindados Scorpion, as metralhadoras e as munições fornecidos pela Grã-Bretanha, estavam a aterrorizar e a matar o povo em Aceh até ao dia em que o tsunami devastou a província.

O governo australiano, actualmente a cobrir se de glória com a sua modesta resposta ao desastre histórico acontecido aos seus vizinhos asiáticos, treinou secretamente as forças especiais da Indonésia, Kopassus, cujas atrocidades em Aceh estão bem documentadas. Isto está em conformidade com os 40 anos de apoio australiano à opressão na Indonésia, notavelmente com a sua devoção ao ditador Suharto enquanto as suas tropas massacravam um terço da população de Timor Leste. O governo de John Howard — notório pelo seu aprisionamento de crianças que procuravam asilo — está actualmente a desafiar o direito marítimo internacional ao negar a Timor Leste o que lhe é devido em royalties do petróleo e do gás, cujo valor monta a 8 mil milhões de dólares. Sem esta receita, Timor Leste, o país mais pobre do mundo, não pode construir escolas, hospitais e estradas ou proporcionar trabalho aos seus jovens, 90 por cento dos quais estão desempregados.

A hipocrisia, o narcisismo e a propaganda de ludibrio dos senhores do mundo e do seus apaniguados estão em perseguição cerrada. Abundam superlativos quanto às suas intenções humanitárias enquanto a divisão da humanidade entre vítimas valiosas e não valiosas domina o noticiário. As vítimas de um grande desastre natural são valiosas (embora não se saiba por quanto tempo) ao passo que as vítimas dos desastres imperiais fabricados pelo homem são sem valor e frequentemente não mencionáveis. De algum modo, os repórteres não podem induzir-se a si próprios a relatar o que está a acontecer em Aceh, apoiado pelo “nosso” governo. Este espelho moral que só reflecte um lado permite-nos ignorar um rastro de destruição e carnificina que constitui um outro tsunami.

Considerem as agruras do Afeganistão, onde a água limpa é desconhecida e a morte de recém nascidos é comum. Na conferência do Partido Trabalhista em 2001, Tony Blair anunciou a sua famosa cruzada para “reordenar o mundo” com a promessa: «Ao povo afegão, assumimos este compromisso, nós não viraremos as costas... trabalharemos convosco para assegurar [que se encontra um caminho] para sair da pobreza que é a vossa miserável existência». O governo Blair tinha acabado tomar parte na conquista do Afeganistão, na qual morreram tantos como 20.000 civis. Em todas as grandes crises humanitárias de que se tem memória, nenhum país sofreu mais e nenhum foi menos ajudado. Apenas 3 por cento de toda a ajuda internacional gasta no Afeganistão foi para a reconstrução, 84 por cento é para a “coligação” conduzida pelos militares dos EUA e o resto são migalhas para ajuda de emergência. Aquilo que é muitas vezes apresentado como rendimento da reconstrução é investimento privado, tais como os 35 milhões de dólares que financiarão um proposto hotel de cinco estrelas, sobretudo para estrangeiros. Um conselheiro do ministro dos assuntos rurais em Cabul contou-me que o seu governo recebera menos de 20 por cento da ajuda prometida ao Afeganistão. «Nós não temos sequer dinheiro suficiente para pagar salários, quanto mais planos de reconstrução», disse ele.

A razão, naturalmente que não falada, é que os afegãos estão entre as vítimas menos valiosas. Quando um helicóptero americano canhoneou repetidamente uma remota aldeia rural, matando até 93 civis, um oficial do Pentágono foi levado a declarar: «As pessoas ali estão mortas porque nós quisemos que elas morressem».

Tornei-me agudamente consciente deste outro tsunami quando cobri o Camboja em 1979. Após uma década de bombardeamento americano e de barbaridades de Pol Pot, o Camboja jazia tão prostrado como Aceh está hoje. A doença somava se à fome e o povo sofria um trauma colectivo que poucos podiam explicar. Contudo, durante nove meses após o colapso do regime do Khmer Vermelho não chegou qualquer ajuda efectiva de governos ocidentais. Ao invés disso, um embargo ocidental apoiado pela China foi imposto ao Camboja, negando lhe virtualmente toda a maquinaria de recuperação e assistência. O problema para os cambojanos era que os seus libertadores, os vietnamitas, tinham vindo do lado errado da guerra fria, tendo recentemente expulsado os americanos da sua pátria. Aquilo tornava os vítimas não valiosas, e descartáveis.

Um semelhante, amplamente silenciado cerco foi imposto ao Iraque durante a década de 1990 e intensificado durante a “libertação” anglo-americana. Em Setembro último, a Unicef relatou que a desnutrição entre as crianças iraquianas havia duplicado sob a ocupação. A mortalidade infantil está agora ao nível do Burundi, mais elevada do que no Haiti e no Uganda. Há pobreza lancinante e uma escassez crónica de remédios. Os casos de cancro estão a aumentar rapidamente, especialmente cancro da mama; a poluição radioactiva está generalizada. Mais de 700 escolas estão danificadas por bombardeamentos. Dos milhares de milhões que se disse terem sido afectados à reconstrução no Iraque, apenas 29 milhões de dólares foram gastos, a maior parte dos quais com mercenários a protegerem estrangeiros. Pouco disto é notícia no ocidente.

Este outro tsunami é em escala mundial, provocando 24.000 mortes a cada dia devido à pobreza, à dívida e à divisão que são os produtos de uma superculto chamado neoliberalismo. Isto foi reconhecido pelas Nações Unidas em 1991 quando convocou uma conferência dos Estados mais ricos em Paris com o objectivo de implementar um “programa de acção” para resgatar as nações mais pobres do mundo. Uma década depois, todos os compromissos assumidos pelos governos ocidentais foram virtualmente rompidos, tornando disparate [waffle] do chanceler (tesoureiro) britânico Gordon Brown acerca de o G8 “partilhar o sonho britânico” de acabar com a pobreza nisso mesmo — um disparate [waffle]. Nenhum governo honrou a “linha de base” das Nações Unidas e concedeu uns miseráveis 0,7 por cento ou mais do seu rendimento nacional à ajuda além mar. A Grã Bretanha dá apenas 0,34 por cento, tornando o seu “departamento de ajuda internacional” uma piada de mau gosto. Os EUA dão 0,15 por cento, a percentagem mais baixa de qualquer Estado industrial.

Em grande medida invisível e não imaginável pelos ocidentais, milhões de pessoas sabem que as suas vidas foram declaradas supérfluas. Quando tarifas e subsídios a alimentos e combustível são eliminados sob um diktat do FMI, pequenos agricultores e camponeses sem terra sabem que enfrentam o desastre, razão porque os suicídios entre agricultores são epidémicos. Somente os ricos, diz a Organização Mundial de Comércio, podem proteger as suas indústrias e agricultura internas; somente eles têm o direito de subsidiar exportações de carne, cereais e açúcar e fazer dumping deles nos países pobres a preços artificialmente baixos, destruindo assim meios de vida e vidas.

A Indonésia, outrora descrita pelo Banco Mundial como «um aluno modelo da economia global», é um caso evidente. Muitos daqueles levados à morte em Sumatra no Boxing Day foram desapropriados pelas políticas do FMI. A Indonésia tem uma dívida impagável de 100 mil milhões de dólares. O World Resources Institute diz que o tributo deste tsunami fabricado pelo homem atinge 13 18 milhões de mortes de crianças por ano em todo o mundo; ou 12 milhões de crianças abaixo da idade de cinco anos, segundo um Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. «Se 100 milhões foram mortos nas guerra formais do século XX», escreveu o cientista social australiano Michael McKinley, «por que são eles privilegiados em compreensão em relação ao tributo [de mortes] anual de crianças devido aos programas de ajustamento estrutural desde 1982?».

Que o sistema que provoca isto tenha a democracia como o seu grito de guerra é uma zombaria que os povos de todo o mundo cada vez entendem melhor. É este conhecimento em ascensão, consciência mesmo, que proporciona mais do que esperança. Desde que os cruzados em Washington e Londres malbarataram a simpatia mundial pelas vítimas do 11 de Setembro de 2001 a fim de acelerar a sua campanha de dominação, avança uma inteligência pública crítica e encara os semelhantes a Blair e Bush como mentirosos e as suas acções culpáveis como crimes. A presente efusão de ajuda às vítimas do tsunami entre pessoas comuns no ocidente é uma recuperação espectacular das políticas de comunidade, moralidade e internacionalismo negadas pelos governos e pela propaganda corporativa. Ao ouvir turistas retornando de países abalados, dominados pela gratidão pelo modo gentil e expansivo como alguns dos mais pobres entre os pobres lhes deram abrigo e cuidaram deles, ouve-se a antítese das “políticas” que só cuidam dos avarentos.

«A mostra mais espectacular de moralidade pública que o mundo já viu», foi como a escritora Arundhati Roy descreveu a cólera anti-guerra que sacudiu o mundo há quase dois anos atrás. Um estudo francês estima agora que 35 milhões de pessoas se manifestaram naquele dia de Fevereiro [de 2003] e afirma que nunca houve nada como isso; e que era apenas o princípio.

Isto não é retórica; a renovação humana não é um fenómeno, é ao invés a continuação de uma luta que por vezes pode parecer estar congelada, mas é uma semente por baixo da neve. Tome se a América Latina, há muito declarada invisível e supérflua no ocidente. «Os latino americanos foram treinados para a impotência», escreveu noutro dia Eduardo Galeano. «Uma pedagogia transmitida desde tempos coloniais, ensinada por soldados violentos, professores timoratos e frades fatalistas, enraizou nas nossas almas a crença de que a realidade é intocável e que tudo o que podemos fazer é engolir em silêncio as desgraças que cada dia nos traz». Galeano estava a celebrar o renascimento da democracia real na sua pátria, o Uruguai, onde o povo votou “contra o medo”, contra a privatização e seu cortejo de indecências. Na Venezuela, as eleições municipais e estaduais de Outubro marcaram a nona vitória democrática do único governo do mundo que partilha a sua riqueza petrolífera com os mais pobres do seu povo. No Chile, o último dos militares fascistas apoiados pelos governos ocidentais, nomeadamente Thatcher, estão a ser processados por forças democráticas revitalizadas.

Estas forças são parte de um movimento contra a desigualdade e a pobreza e a guerra que se tem levantado nos últimos seis anos, e é mais diverso, mais empreendedor, mais internacionalista e mais tolerante para com as diferenças do que qualquer coisa que tenha conhecido na minha vida. É um movimento livre do fardo de um liberalismo ocidental que acredita representar uma forma superior de vida; os mais sábios sabem que isto é colonialismo com outro nome. Os mais sábios também sabem que assim como a conquista do Iraque está a desconjuntar se, assim também todo o sistema de dominação e empobrecimento poderá igualmente desfazer-se.


PILGER, John,"O outro Tsunami, fabricado pelo Homem", 6 de Janeiro de 2005, www.infoalternativa.pt.vu .

sexta-feira, janeiro 21, 2005

rev20

Arundhati roy

Esta é uma síntese editada da conferência feita por Arundhati Roy por ocasião do Prémio da Paz de Sydney de 2004 (2004 Sydney Peace Prize) no Seymour Cente, em 2 de Novembro de 2004.

"Às vezes, algumas frases feitas contêm uma verdade. Não pode haver paz sem justiça. E sem resistência, não haverá justiça. Actualmente, não se trata meramente da justiça em si, mas da própria ideia de justiça que está sob ataque.
A agressão contra sectores frágeis e vulneráveis da sociedade é tão completo, tão cruel e tão astuto que o absoluto atrevimento desse ataque tem corroído até a nossa definição de justiça, forçando-nos a baixar os olhos e a diminuir as nossas expectativas. Mesmo entre os bem intencionados, o magnífico conceito de justiça tem sido gradualmente substituído com o muito mais reduzido e muito mais frágil discurso dos "direitos humanos".
Trata-se de uma mudança alarmante. A diferença é que as noções de igualdade e de paridade têm sido esvaziadas e retiradas da equação. É um processo de atrito. Quase inconscientemente, começamos a pensar em justiça para os ricos e em direitos humanos para os pobres. Justiça para o mundo corporativo, direitos humanos para afegãos e iraquianos. Justiça para as castas mais altas da Índia, direitos humanos para os dalits e adivasis (quando muito). Justiça para os australianos brancos, direitos humanos para os aborígines e imigrantes (a maioria das vezes nem isso).
Está a ficar cada vez mais claro que a violação dos direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de implementação de uma estrutura política e económica coerciva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra os direitos humanos estão a ser mostradas como uma falha infeliz, quase acidental, de um sistema político e económico que seria, de outro modo, perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de atenção por parte de alguma organização não governamental.
É por isso que em áreas de grandes conflitos — na Caxemira e no Iraque, por exemplo — os profissionais de direitos humanos são vistos com um alto grau de suspeita. Muitos movimentos de resistência de países pobres, os quais estão lutando contra grandes injustiças e questionando os princípios de base do que constitui "libertação" e "desenvolvimento", consideram as organizações não governamentais de direitos humanos como missionários contemporâneos que vieram aparar as arestas mais feias do imperialismo — para desactivar a ira política e manter o status quo.
A Austrália reelegeu John Howard há apenas poucas semanas. E foi ele que, entre outras coisas, conduziu esta nação a participar na invasão e ocupação ilegais do Iraque.
Seguramente, essa invasão entrará na História como um dos momentos de maior cobardia de todos os tempos. Foi uma guerra na qual um bando de nações ricas, armadas com armas nucleares suficientes para destruir o mundo inúmeras vezes, cercaram uma nação pobre, falsamente acusada de ter armas nucleares, usaram as Nações Unidas para forçar o seu desarmamento, invadiram-na, em seguida ocuparam-na e agora estão no processo de vendê-la.
Falo do Iraque, não porque todo o mundo está a falar disso, mas porque é o sinal do que está por vir. O Iraque marca o início de um novo ciclo, oferecendo-nos a oportunidade de observar a conspiração corporativo-militar que passou a ser conhecida como o "império" em obras. No novo Iraque, tiraram-se as luvas.
À medida que se intensifica a batalha pelo controle dos recursos do mundo, o colonialismo económico, por meio da agressão militar oficial, está a voltar a cena. O Iraque é a culminação lógica do processo de globalização corporativa no qual se fundiram o neocolonialismo e o neoliberalismo. Se pudéssemos dar uma olhadela através de uma fresta da espessa cortina de sangue, veríamos impiedosas transacções ocorrendo nos bastidores.
Invadido e ocupado, o Iraque teve que pagar US$ 200 mihões (US $270 milhões) em "ressarcimentos" correspondentes a lucros perdidos por corporações como: Halliburton, Shell, Mobil, Nestlé, Pepsi, Kentucky Fried Chicken e Toys R Us. Isso sem contar os US$ 125 biliões de dívida soberana, forçando o país a voltar-se para o FMI e para o seu programa letal de ajuste estrutural. (Embora, no Iraque, parece que não tenham sobrado tantas estruturas passíveis de ajuste.)
Dessa forma, o que significa "paz" neste mundo selvagem, corporativizado e militarizado? O que significa "paz" para as pessoas que vivem no Iraque, na Palestina, na Caxemira, no Tibete e na Tchetchénia ocupados? Ou para o povo aborígine da Austrália? Ou para os curdos na Turquia? Ou para os dalits e adivasis da Índia? O que significa "paz" para os que não são muçulmanos em países islâmicos, ou para as mulheres, no Irão, na Arábia Saudita e no Afeganistão? O que significa "paz" para os milhões de pessoas que estão a ser desarraigadas das suas terras para a construção de represas e projectos de desenvolvimento? O que significa "paz" para os pobres que estão a ser activamente roubados nos seus recursos? Para eles, paz é guerra.
Sabemos perfeitamente quem beneficia com a guerra na era do império. Mas precisamos também de nos perguntar quem beneficia com a paz na era do império. Defender a guerra é criminoso. Mas falar de paz sem falar de justiça torna-se na defesa de um certo tipo de capitulação. E falar de justiça sem tirar a máscara das instituições e dos sistemas que perpetuam a injustiça é muito mais que simples hipocrisia.
É muito fácil culpar os pobres por serem pobres. É fácil acreditar que o mundo está a ser vítima de uma escalada de terrorismo e guerra. É isso que permite a George Bush dizer: "Quem não está connosco está contra nós". Essa é uma escolha falsa. O terrorismo não é mais do que a privatização da guerra. Os terroristas são os livres mercadores da guerra. Eles crêem que o uso legítimo da violência não é prerrogativa exclusiva do estado.
É uma mentira fazer uma distinção moral entre a inacreditável brutalidade do terrorismo e a carnificina indiscriminada da guerra e da ocupação. Ambos os tipos de violência são inaceitáveis. Não podemos apoiar um e condenar o outro."

ROY, Arundhati, www.imediata.com/lancededados/ARUNDHATIROY/arundati_paz.html

quarta-feira, janeiro 19, 2005

p_18_01_2005

segunda-feira, janeiro 17, 2005

O medo vai ter tudo

O medo vai ter tudo
Há poemas que falam por nós e pelos momentos que vivemos. Alexandre O´Neil escreveu «O Poema pouco original do medo» e não estava a pensar no que os EUA nos reservam para os próximos quatro anos. Mas podia tê-lo feito. O medo, afinal, venceu. Teve tudo, vai ter tudo.



«O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindadode
alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários(assim assim)
escriturários(muitos)
intelectuais(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos»

Carvalho, Miguel, VISÃO, http://www.visaoonline.clix.pt/paginas/conteudo.asp?CdConteudo=36097

Liberdade?

"Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela ansiedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm.O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e com amigos cibernéticos.Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdidad não nos abreviar a existência.Será esta a liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível?O mundo às avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esqueçer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o recomenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação.Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desânimo que não procure ânimo.Também não há escola que não encontre a sua contra-escola."

Abaixo este sistema merdoso que nos oprime e reprime. Já chega deste lixo civilizacional!

GALEANO, Eduardo, "De pernas para o ar", Lisboa, Editorial Caminho, 2002.

sábado, janeiro 15, 2005

80%

80%

A comercialização da alma

Foi-se o tempo em que as pessoas de vez em quando ainda ousavam pensar, envergonhadas, em outra coisa senão na sua própria venalidade e na do seu produto.
Cada vez mais os indivíduos se transformam, de facto, naquele "homo economicus" que outrora era uma simples imagem da economia política clássica. Com a economização de todas as esferas da vida, a economização da consciência avançou para um grau até há pouco inconcebível -e isso, graças à globalização, nos quatro cantos do mundo, não só nos centros capitalistas. Quando até mesmo amor e a sexualidade, tanto na ciência quanto no quotidiano, são pensados cada vez mais como categorias económicas e estimados segundo critérios económicos, a "comercialização da alma" parece irresistível.
Não há mais, é lícito pensar, nenhum oásis emocional, cultural ou comunitário alheio às garras económicas: o cálculo orientado pelo lucro abstracto e a política empresarial de custos perfazem, no início do século 21, todo o circuito da existência. Dessa tendência social à plena economização nasceu, evidentemente, um novo tipo de socialização: o modelo da família nuclear fordista (mãe, pai, um filho, um cachorro, um carro) foi reduzido ao modelo do celibatário pós-moderno assexuado ("mônada hermética", um computador, um telemóvel). Aqui estamos às voltas, em certa medida, com indivíduos -concorrência solitários, municiados de alta tecnologia, que, ao mesmo tempo, regrediram socialmente ao estado do ego infantil: "Célere, flexível, pronta para o trabalho, egoísta, traiçoeira, superficial" -assim descreve uma revista económica alemã as qualidades essenciais da chamada "geração @". Pessoas com tal estrutura de carácter e forma de consciência teriam sido consideradas ainda nos anos 70 como perturbadas mentais e habilitadas a um tratamento sociopedagógico; hoje foram alçadas a modelo social. Isso porque somente uma combinação de inteligência tecnicamente reduzida a consertos domésticos, absoluto sangue-frio e imaturidade emocional pode possibilitar que a "adaptação ao mercado" por parte da pessoa chegue a extremos -e é justamente essa norma de conduta que requer o capitalismo global em crise. Não é à toa que se vêem, com frequência sempre maior, figuras púberes com a máscara do sucesso estampada no rosto.
Esses são os supostos "fundadores" do novo empresariado na Internet, que trabalham feito loucos e se identificam com a sua empresa a ponto de renunciarem a si mesmos. Regalando-se nas suas fantasias de omnipotência, imaginam mudar a face do mundo, embora o seu conteúdo pessoal seja caracterizado por uma lastimável banalidade e redunde em efeitos tecnológicos mínimos ou nalguma forma de propaganda sem graça. Com o palavreado de entrevistadores pop, eles vêem-se fazendo uma "revolução", ao passo que na verdade são acríticos e conformistas ao extremo perante a ordem dominante, num grau jamais alcançado por nenhuma outra geração nos últimos 200 anos.
Excentricidade estapafúrdia
Claro que semelhante tipo de pobreza intelectual e emocional, que no fundo representa uma curiosidade digna de compaixão, não pode de forma nenhuma impor-se como realidade social. A maioria das pessoas não está em condições de promover tal afronta à sua personalidade, ainda que se empenhem. Mas, mesmo a excentricidade intelectual ou espiritual mais estapafúrdia pode parecer um modelo a ser seguido quando a sociedade a eleva a uma espécie de culto. Na sociedade dos media não há nada que não possa ser em breve intervalo encenado como moda de massas, porque a consciência dos consumidores há muito que perdeu o gume e se encontra indefesa.
Daí por que, de início, não se "ganha" consciência do "Zeitgeist". Ao contrário, o cego processo de desenvolvimento nas sociedades de mercado produz sempre novas tendências e gostos a princípio pouco claros, farejados pelos media como cães no trilho de um odor desconhecido. E aos poucos é destilado um perfil que, muitas vezes, cedo é abafado, mas noutras se fortalece como modelo de uma determinada época ou formação do mercado. Isso pode valer para esferas isoladas como a política, a cultura popular, a ideologia, os produtos e marcas, incluindo doenças da moda ou demais histerias de massa, mas pode-se tratar também de um fenómeno abrangente, que dita as ordens a toda uma sociedade. Um certo tipo espiritual, cultural e social, que simboliza para um meio social em ascensão o segmento social dirigente, é de súbito guindado então ao trono do "Zeitgeist".
Dali em diante, a tendência antes espontânea transforma-se em programa e propaganda. Na mesma medida em que os protagonistas da nova economia, movidos a água mineral, foram forjados como estrelas pop, começaram também as "histórias económicas" a dominar as acções da indústria de entretenimento e a fundir-se numa espécie de novela do neoliberalismo. "Nada mais divertido do que a economia" -esse o slogan de um semanário alemão para investidores. Os acontecimentos na Bolsa, áridos e desinteressantes como são, não somente absorveram cada vez mais a economia e a política, mas nos anos 90 foram alçados ainda -para além dos tópicos da programação das emissoras privadas - à cultura pop de ampla difusão: quem não comungar desse espírito, assim dizia a mensagem em todos os canais, é burro e antiquado.
O "daytrader" transformou-se, como figura dos media, em aventureiro na selva dos mercados, o capitalista impúbere em príncipe de conto de fadas, a esperteza mercante em heroína da emancipação. Enquanto isso as batalhas dos "global players" pelas fusões e "aquisições hostis" são encenadas como um farwest, um campeonato de futebol ou um episódio da empreitada espacial. E, nas festas infantis, os petizes (como sugere um anúncio) não se mascaram mais como cowbois, mas como Bill Gates.
Paralelamente à indústria pop, e com coerência lógica, o economicismo desenfreado vira programa também na pedagogia. Claro que o sistema educacional e pedagógico sempre seguiu os imperativos da visão do mundo oficial. Mas nesse caso as directrizes oriundas das elites funcionais permaneceram estáveis por um longo intervalo de tempo, e a pedagogia, como instância de socialização que transcendia a família, detinha um inegável monopólio. Hoje, ao contrário, a matriz dos "valores", objectivos e conteúdos a serem transmitidos pelo sistema educacional não somente se tornou insegura e instável como também escolas e universidades foram obliteradas na sua tarefa de socialização pela empresa mediática universal e aos seus ditames têm de prestar contas.
E nos media o factor da economização já avançou bem mais do que na pedagogia: segundo a sua forma, tornaram-se nesse meio tempo (na sua maioria) puras empresas comerciais e, segundo o seu conteúdo, passaram a ser as grandes propagandistas de uma cultura pop orientada pelo dinheiro e pelo capitalismo - casino -e, portanto, fomentadoras da total economização. Sob a pressão desse desenvolvimento, a própria pedagogia tradicional começa a dissolver-se no totalitarismo económico, estimulada e assistida não só pelos media, mas também por todas as instituições oficiais.
Por volta de meados dos anos 90 -na maior parte dos países europeus e em conformidade ao modelo anglo-saxónico - foram promovidas grandes campanhas para orientar todo o sector pedagógico e educacional para as exigências de uma "economização e comercialização da vida". Numa acção concertada de governos e partidos políticos, bancos e caixas económicas, cartéis e associações de empresários, comunas, directorias de escolas e grémios universitários, abateu-se sobre todos os sectores pedagógicos uma onda inaudita de propaganda favorável à mentalidade economicista e comercial.
Num amálgama de instrução económica e lavagem cerebral ideológica, inculca-se a imagem de uma pessoa que vive automaticamente, 24 horas por dia, segundo critérios empresariais e interioriza "o mercado" como destino e oportunidade, como conteúdo de vida e identidade, como inarredável círculo de vida unidimensional. Do director de museu ao enfermeiro, do artista ao mendigo nas ruas, todas as actividades e ocupações, mesmo aquelas que até hoje não eram entendidas como "económicas", devem ser vivenciadas do ponto de vista do marketing, sendo essa visão do mundo exercitada desde a infância.
O objectivo é a pessoa como "empreendedor próprio": todas as relações sociais devem transformar-se em relações de oferta e procura, todos os contactos em "contactos com clientes". Essa dissolução da vida no economicismo capitalista não substitui simplesmente, como novo modelo abstracto da educação, o cânone tradicional da ética burguesa, mas é também exercitada na prática. No topo do sistema pedagógico e institucional, nas universidades, impôs-se tanto nas pesquisas como no leccionado em várias disciplinas numa orientação comercial imediata. Numa sociedade economizada, assim diz o postulado, cada disciplina científica, independentemente do seu respectivo conteúdo, é também uma disciplina económica. Todas as matérias científicas se rebaixam a subcategorias. Não importa se se trata de linguística, geologia, física, psicologia ou mesmo filosofia: os estudantes devem ser levados desde o início a considerar tudo quanto aprendem sob o ponto de vista da venalidade. Estudantes de todas as faculdades frequentam cursos económicos nos quais aprendem como classificar o saber de acordo com a sua avaliação pela "economia". Em parte, são encorajados a exercitar directamente a comercialização de conteúdos científicos em simulações empresariais. E não são poucos os estudantes que, de facto, montam os seus negócios ainda durante os estudos, para abreviar o caminho que leva do leccionado ao mercado.
O mesmo vale para a pesquisa. Um número crescente de professores executa não somente pesquisas sob encomenda para empresas, mas já considera a própria instituição científica como uma espécie de firma a ser organizada segundo os pontos de vista empresariais. E onde os cientistas não seguem voluntariamente uma tal orientação, isso é-lhes exigido cada vez mais pelas instituições estatais: assim é que o governo federal alemão, ante a encarniçada resistência dos interessados, quer obrigar toda a pesquisa de vulto a trabalhar segundo critérios de imediata comercialização. Um passo além já foi dado há tempos pelo ensino público. O jogo das Bolsas como matéria de aula faz parte do dia-a-dia de muitas grades curriculares. Em Paris, Gilbert Molinier, professor de filosofia no colégio Auguste Blanqui, protestou no ano passado, numa carta aberta publicada pela imprensa, contra essa pedagogia das Bolsas: "Para grande espanto meu, ouvi dizer que o colégio Auguste Blanqui, em colaboração com um banco, tomou parte num "jogo" chamado "Les Masters de l'Economie". Esse jogo consiste em distribuir um portfólio de acções virtuais aos alunos. Estes obrigam-se, com a ajuda dos seus professores, chamados "padrinhos" (!), a maximizar o valor dessas acções num prazo de três meses. Entre os inúmeros prémios aos vencedores, o primeiro é uma viagem para conhecer a Bolsa de Nova York, o templo das finanças mundiais... Será que poderiamdizer-me qual o interesse pedagógico de semelhante "jogo'? Se nele aprendemos que importa somente o que traz dinheiro, queiram por favor responder a esta pergunta: somos obrigados, por dever de ofício, a ministrar as aulas? Será também esse colégio outro cemitério da cultura?". Burocratas da educação.Mas professores como Molinier são hoje vistos apenas como "desmancha-prazeres". Por toda a parte as matérias lectivas são programadas pelos burocratas da educação para servir de foco a "jovens empresários". Classes inteiras já se exercitam em cursos preparatórios de constituição de empresas, valor de acções e movimentos de mercado. Seguindo o modelo das "firmas escolares" inglesas e irlandesas, a "Fundação Alemã para a Criança e a Juventude" lançou uma campanha em 1997, na cidade de Berlim, intitulada "Espírito Empresarial - Um Ensino": aos alunos cumpria fundar "autenticas" micro - empresas e aprender a pensar em função dos lucros.Nos media circulam histórias de sucesso, daquelas bem kitsch, sobre adolescentes sedentos de lucros, cujas micro - empresas programam websites, organizam viagens ou vendem sanduíches. Uma conversa fiada e tanto, suspeitosamente afim ao culto propagandista do "operário padrão" no socialismo de Estado. Toda criança que não conseguir acompanhar o pensamento mercantil deve sentir-se mal.
Nos Estados Unidos, foram criados cursos na escola primária sob o lema "Crianças Aprendem o Capitalismo", nos quais meninos de sete a dez anos enfiam na cabeça as regras de compra e venda de acções e como operar derivativos.E por último a própria escola é abandonada, como instituição, à "liberdade empresarial". Se é possível privatizar infra-estruturas e prisões, por que não o ensino público? O exemplo é dado por empresários, como o norte-americano David Henry, que quer administrar jardins-de-infância como uma rede de fast-food e levá-los à Bolsa. Mas as próprias escolas estatais devem "prover o seu sustento" por meio da actividade económica. Na maioria dos países cai por terra a proibição de anúncios dentro dos estabelecimentos de ensino. Quem, como professor, se habituou a que os corredores e os ginásios da escola sejam usados como área de propaganda, em breve não achará mal nenhum em circular ele mesmo como garoto propaganda. Na imprensa alemã muito se elogiou o director de um colégio bávaro que não se considerava mais um "pedagogo", mas sim um "administrador de empresa de porte médio".O consolo de tudo isto é um só: as instituições de ensino são em toda a parte a lanterna de proa da sociedade, pois são as mais conservadoras de todas as instituições. Quando uma inovação chega à escola e ao ensino em geral, normalmente já se encontra fora de moda. Desse prisma, a inflação de economicismo nas instituições de ensino talvez indique que a era do comércio totalitário já se esgota.
KURZ, Robert, "A comercialização da alma",http://planeta.clix.pt/obeco/,11 Fevereiro de 2001.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Mosquitos e Globalização

"O que hoje designamos por globalização neoliberal é a versão mais recente da dominação que a Europa, desde há cinco séculos, a América do Norte, desde há um século, e o Japão, desde há quatro décadas, exercem sobre o resto do mundo. As versões anteriores foram o colonialismo e o imperialismo. Em qualquer destas versões, a dominação assumiu duas formas principais: exploração e opressão. Qualquer delas começou por ser exercida no interior dos países desenvolvidos e foi depois difundida no sistema mundial. A diferença entre as duas formas é a seguinte. No caso da exploração, há uma relação directa e desigual entre o explorador e o explorado, e de tal modo que o explorador não existe sem o explorado. A relação entre o senhor e o escravo e entre o patrão e o operário foram nos últimos séculos as duas grandes formas de exploração. No caso da opressão, a relação desigual não é directa e sim estrutural, e por isso nem o opressor precisa do oprimido, nem o oprimido sabe muitas vezes quem é o opressor. Um desempregado, um deficiente, um camponês autónomo, uma mulher, um membro de uma minoria étnica ou religiosa podem ser oprimidos sem serem explorados. A nível mundial, entre as classes dominadas, os explorados foram sempre um pequeno grupo quando comparado com a massa dos oprimidos, e as classes dominantes dos países desenvolvidos temeram sempre mais os explorados que os oprimidos. Os explorados foram o motor do sistema, enquanto os oprimidos foram um resíduo descartável.

O que há de novo na globalização neoliberal é a fusão tendencial entre explorados e oprimidos. Transformado o trabalho num recurso global, tornou-se tão fácil explorar que os explorados deixaram de ser uma ameaça e passaram a ser tão descartáveis quanto os oprimidos. Por isso, as classes dominantes nunca foram tão arrogantes como hoje, nem nunca temeram tão pouco o fim dos seus privilégios. Mas como a história tem razões que a razão dominante desconhece, os oprimidos, sobretudo os do chamado Terceiro Mundo, têm vindo a transformar-se nas últimas décadas numa fonte insuspeitada de temores e ameaças. Saliento três. A primeira ameaça é a SIDA. Desde que, segundo se crê, nos anos 40, um caçador na África Central recebeu de um macaco o HIV, a África sub-sahariana transformou-se gradualmente numa bomba relógio: 15 milhões de mortos e 70% da população mundial de seropositivos. A ameaça reside no perigo da propagação alargada da epidemia ao mundo desenvolvido e nos prejuízos para os negócios que este último pretenda expandir em África.
A segunda ameaça são os imigrantes clandestinos. Como bem demonstra a nova lei sobre a imigração ao selar a sorte dos emigrantes ao contrato de trabalho, o emigrante só interessa à Europa enquanto explorado; o emigrante oprimido, em busca de uma vida melhor, é uma ameaça. Felizmente, a imigração clandestina encarregar-se-á de pôr cobro a esta hipocrisia. A terceira ameaça são os mosquitos portadores de doenças, que viajam hoje tanto de avião quanto os executivos das multinacionais. A Organização Mundial de Saúde acaba de lançar o alerta contra "a malária de aeroporto", e quem viaja de África para a Europa já se habituou ao ritual do Primeiro Mundo a defender-se do Terceiro Mundo pela mão das hospedeiras, que percorrem a cabine do avião empunhando latas de insecticida. Apesar disso, a malária e o dengue chegam ao centro do mundo pela internet dos oprimidos. A SIDA, os emigrantes e os mosquitos não são uma perversidade. São a consequência normal de uma globalização perversa."
SANTOS, Boaventura de Sousa,"Mosquitos e Globalização", Visão,7 de Setembro de 2000.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Weapons of Mass Distraction

Weapons of Mass Distraction

sexta-feira, janeiro 07, 2005

Resistências

"Resistir é dizer não. Não ao desprezo. Não à arrogância. Não à aniquilação económica. Não ao novos donos do mundo. Não aos poderes financeiros. Não ao G8. Não ao Consenso de Washington. Não ao mercado totalitário. Não ao comércio livre total. Não ao domínio do “Poquér do Mal” (Banco Mundial, FMI, OCDE, OMC). Não ao hiperprodutivismo. Não aos OGM. Não às permanentes privatizações . Não à extensão imparável do sector privado. Não à exclusão. Não ao sexismo. Não à regressão social. Não ao desmantelamento da segurança social. Não à pobreza. Não às desigualdades. Não ao esquecimento do Sul. Não à morte de 30.000 crianças pobres por dia. Não à destruição do ambiente. Não à hegemonia militar duma única hiperpotência. Não à guerra preventiva. Não às guerras de invasão. Não ao terrorismo. Não aos atentados contra populações civis. Não aos racismos. Não ao anti-semitismo. Não à islamofobia. Não ao securitarismo total. Não à vigilância generalizada. Não ao policiar do pensamento. Não ao rebaixamento cultural. Não às novas censuras. Não aos meios de comunicação social que mentem. Não aos meios de comunicação social que nos manipulam.


Resistir é também poder dizer que sim. Sim à solidariedade entre os 6 mil milhões de habitantes do nosso planeta. Sim aos direitos das mulheres. Sim à existência de uma ONU renovada. Sim a um novo plano Marshall para ajudar África. Sim à erradicação definitiva do analfabetismo. Sim a uma ofensiva internacional contra a fractura digital. Sim a uma moratória internacional para a preservação da água potável Sim aos medicamentos genéticos para todos. Sim a uma acção decisiva contra a sida. Sim à preservação das culturas minoritárias. Sim aos direitos dos indígenas. Sim à justiça social e económica. Sim a uma Europa mais social e menos mercantil. Sim ao Consenso de Porto Alegre. Sim a uma Taxa Tobin de ajuda aos cidadãos. Sim a um imposto sobre a venda de armas. Sim à supressão da dívida dos países pobres. Sim à interdição dos paraísos fiscais.


Resistir é sonhar que outro mundo é possível. E contribuir para o construir."

RAMONET, Ignacio, “Resistências”, Le Monde Diplomatique, nº62, 2004,p.1.

terça-feira, janeiro 04, 2005

One Solution

sem título

«A forma inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro da opinião aceitável, mas estimular muito intensamente o debate dentro daquele espectro... Isto dá às pessoas a sensação de que o livre pensamento está pujante, e ao mesmo tempo os pressupostos do sistema são reforçados através desses limites impostos à amplitude do debate».


Noam Chomsky

Humor Negro

Piada 1

A gasolina com chumbo agregado foi um invento dos Estados Unidos. Por volta dos anos vinte, impôs-se nos Estados Unidos e no mundo. Quando o governo americano a proibiu, em 1986, a gasolina com chumbo estava a matar adultos a um ritmo de cinco mil por ano, segundo a agência oficial que se ocupa da protecção do ambiente. Além disso, segundo as numerosas fontes citadas pela jornalista Jamie Kitman na sua investigação para a revista The Nation, o chumbo havia provocado danos no sistema nervoso e a nível mental de muitos milhões de crianças, ninguém sabe exactamente quantos, durante 60 anos.
Charles Kettering e Alfred Sloan, directores da General Motors, foram os pricipais promotores deste veneno. Eles, passaram à história como benfeitores da medicina, porque fundaram um hospital.

Piada 2

Já os gregos e os romanos sabiam que o chumbo era inimigo do sangue, do solo, do ar e da água. Isto não tem nada de novo. No entanto, alguns países continuam a acrescentar chumbo à gasolina. E o meu país, o Uruguai, ponhamos o caso, chega mais além: castiga a boa conduta. A gasolina sem chumbo é mais cara. Quem contamina menos, paga mais.

Piada 3

Uma empresa americana, a Ethyl, e outra inglesa, a Octel, vendem para fora o que é proibido dentro. O aditivo de chumbo para a gasolina que se exporta para os países que podem ser intoxicados impunemente: quase toda a África e alguns outros países do sul do mundo. Para um negócio em agonia, não estão tão mal. O balanço de 1999 revelou que a Ethyl teve ganhos brutos de 190 milhões de dólares
O problema de Jack O Estripador era o de que estava mal assessorado. O pobre Jack não tinha agentes de relações públicas que maquilhassem a sua imagem nem peritos em publicidade que dissessem bem dos seus actos. Pelo contrário, a empresa Ethyl, nascida do matrimónio entre a General Motors e a Standard Oil, diz na sua propaganda que “ o respeito pelas pessoas” é o mais importante valor que guia as suas acções, e que faz o que faz desenvolvendo “uma cultura baseada na confiança mútua e no respeito mútuo”. E a empresa Octel explica:” A Octel continua a desempenhar um papel primordial no processo universal de eliminação dos combustíveis com chumbo, através do fornecimento seguro e eficiente do chumbo para combustíveis, que continuará fornecendo aos seus clientes enquanto eles o requeiram”. Uma obra prima: praticar o crime é a melhor maneira de colaborar na luta contra o crime.

Piada 4

Segundo o último relatório do Banco Mundial, 15 por cento da população do planeta devora metade de toda a energia que o planeta consome. Os automóveis tragam boa parte dessa metade. Nos países ricos, há 580 veículos por cada mil habitantes; nos países pobres, há dez.
Os países ricos proibiram a gasolina com chumbo, mas os seus habitantes de quatro rodas, escondem outros venenos. Da vertiginosa motorização das ruas provém boa parte dos gases que aquecem o planeta, enlouquecem o clima e perfuram o ozono. Os automóveis são cada vez mais numerosos e cada vez maiores. Quiçá os 4 x 4, que todos os rapazinhos do mundo sonham ter, se chamem assim porque consomem quatro vezes mais combustível do que os automóveis pequenos
Faça-se a nossa vontade, assim na terra como no céu: salvo os bebés, todos têm automóvel próprio no país que mais energia consome e mais veneno exala. O país mais glutão e gastador contém nada mais que 4 por cento da população mundial, emite nada menos do que 24 por cento do dióxido de carbono que agride a atmosfera e gasta rios de dinheiro em publicidade que o absolve.
Uma organização modestamente chamada Força de Tarefas dos Líderes Globais do Meio Ambiente do Amanhã, difundiu um mapa mundo ecológico, publicado com o maior destaque na revista Newsweek e noutros meios, juntamente com um texto explicativo. Os líderes globais, demonstram que os países mais ricos são os melhores amigos da Natureza, são os mais eco-friendly, e os principais culpados das calamidades ecológicas do planeta são o Bangladesh e o Uganda.

Piada 5

O dióxido de carbono, ataca a memória? Teria que se ver. Na sua campanha presidencial, George W. Bush tinha prometido que iria limitar as emissões de gases tóxicos. Esqueceu a sua promessa mal abriu a porta da Casa Branca. Disse não ao acordo internacional de Quioto e confirmou assim, uma vez mais, que os únicos discursos que merecem ser levados a sério são os não pronunciados.

Piada 6

O governo do planeta, é um governo ou um oleoduto? As empresas petrolíferas foram as que mais dinheiro empregaram na campanha de Bush, a mais cara da história. O presidente tinha fundado uma empresa petrolífera a Arbusto Oil, que logo se chamou Bush Explotation, e que foi finalmente vendida à Harken Oil & Gas. O vice-presidente, Dick Cheney, acumulou a sua fortuna pessoal a partir da empresa petrolífera Halliburton. À cabeça da segurança nacional está Condoleezza Rice, que integrou a direcção da empresa petrolífera Chevron entre 1991 e 2000. Don Evans, secretário do Comercio, foi presidente da empresa petrolífera Tom Brown Inc. e director da empresa de petróleo TMBR/Sharp Drilling. Kathleen Cooper, que se ocupa do comércio na Secretaria de Assuntos Económicos, foi executiva da empresa petrolífera Exxon. Thomas White, da Secretaria de Defesa, foi vice-presidente da empresa petrolífera Enron Corporation.

Piada 7

Poderia chamar-se Associação para o Extermínio do Planeta e Arredores. Mas não: chama-se Centro Mundial para o Meio Ambiente.
Entre os seus membros figuram British Petroleum, Occidental Petroleum, Exxon, Texaco, International Paper, Weyerhaeuser, Novartis, Monsanto, BASF, Dow Chemical y Royal Dutch Shell. Todos estes amigos da Natureza e da espécie humana, que periodicamente se condecoram entre si, anunciaram que a empresa Shell receberá a Medalha de Ouro do Meio Ambiente correspondente a 2001. Entre os muitos méritos da empresa, cabe mencionar os seus esforços por arrasar o delta do Níger e por conseguir que a ditadura da Nigéria enviasse para a forca, em 1995, o escritor Ken Saro-Wiwa e outra gente incómoda que andava a protestar.

GALEANO, Eduardo,"Humor Negro", www.patriagrande.net/uruguay/eduardo.galeano/escritos/humor.negro.htm

segunda-feira, janeiro 03, 2005

O Mundo nas mãos

“Quando o vice-presidente americano Dick Cheney afirmou que «a guerra ao terrorismo» poderia durar cinquenta anos ou mais, as suas palavras evocaram a grande obra profética de George Orwell, 1984. Ao que parece, teremos que viver na ameaça e ilusão da guerra permanente, de forma a justificar o aumento do controlo sobre a sociedade e a repressão por parte do Estado; e isto enquanto o Grande Poder persegue o seu objectivo de supremacia global. Washington é transformada em «cidade principal da Airstrip One*», e a culpa de todos os problemas é lançada sobre o «inimigo», o malvado Goldstein, como lhe chamava Orwell. Esse inimigo tanto poderia ser Osama Bin Laden, como os seus sucessores, agrupados no «Eixo do Mal».
Em 1984, três slogans dominavam a sociedade: guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força. O slogan de hoje, «guerra ao terrorismo», inclui igualmente uma inversão de significado. A guerra é terrorismo. A arma mais potente nesta guerra é a pseudo-informação, que difere, relativamente às descrições de Orwell, unicamente na forma, atirando para o esquecimento verdades inaceitáveis e o senso comum histórico. A dissidência é permissível dentro de limites «consensuais», reforçando a ilusão de que a informação e o discurso são «livres».
Os ataques de 11 de Setembro de 2001 não «mudaram tudo», mas aceleraram a continuidade dos acontecimentos, proporcionando um extraordinário pretexto para destruir a democracia social. O trabalho de enfraquecimento da Bill of Rights nos Estados Unidos, em conjunto com o desmantelamento dos julgamentos com júri e de uma enorme diversidade de liberdades correlacionadas, fazem parte da redução da democracia ao ritual eleitoral: isto é, à competição entre partidos, impossíveis de distinguir, pela administração de um Estado de ideologia única.
Cruciais para o crescimento deste «Estado empresarial» são os conglomerados de comunicação social, detentores de um poder sem precedentes, incluindo Imprensa e Televisão, publicações de livros, produção cinematográfica e bases de dados. Eles fornecem um mundo virtual de «eterno presente», como o designou a revista Time: política via média, guerra via média, justiça via média, e mesmo luto via média (Princesa Diana).
A «economia global» constitui o seu mais importante empreendimento de comunicação social. «Economia global» é um moderno termo orwelliano. À superfície, designa transacções financeiras instantâneas, telemóveis, McDonalds’s, Starbucks, férias marcadas via Internet. Sob este brilho, porém, representa a globalização da pobreza, um mundo em que 6000 crianças morrem todos os dias de diarreia, devido ao facto de a grande maioria delas não dispor de água potável.
Neste mundo, que não é observado pela maioria de nós, habitantes do Norte global, um sofisticado sistema de rapina forçou mais de noventa países, desde os anos 80, a programas de «ajustamento estrutural», alargando, como nunca até hoje, o fosso entre ricos e pobres. Este sistema é designado por «construção de nações» (nation building) e «bom governo», pelo «quarteto» que domina a Organização Mundial de Comércio ( Estados Unidos, Europa, Canadá e Japão) e pelo triunvirato de Washington (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Departamento do tesouro dos EUA), que controlam até mesmo aspectos de pormenor das políticas governamentais dos países em vias de desenvolvimento. O seu poder provém em grande medida de uma dívida impossível de saldar, que força os países pobres a pagar todos os dias 100 mil milhões de dólares aos seus credores ocidentais. O resultado é um mundo em que uma elite de menos de mil milhões de pessoas controla 80% das riquezas da Humanidade.”

*Referência à obra de George Orwell, The Road to Airstrip One
PILGER, John, O mundo nas mãos, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2004.p.13