A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, setembro 25, 2004

De Hiroxima às Twin Towers

De Hiroxima às Twin Towers


“Visto o número de vítimas civis inocentes mortas no Afeganistão a título “colateral2 pelos bombardeamentos norte americanos, ser agora igual ao número das que morreram no ataque às Twin Towers, talvez nos seja permitido situar os acontecimentos numa perspectiva mais ampla - mais ampla mas não menos trágica - e pôr uma nova questão: matar deliberadamente será fazer um mal mais grave ou mais repreensível do que matar às cegas e sistematicamente? ( Digo sistematicamente porque os Estados Unidos começaram a pôr de pé esta estratégia armada a partir da Guerra do Golfo.)
Não tenho resposta para a questão que formulo. È possível que no terreno, por entre as bombas em cacho lançadas pelos B-52, ou no fumo sufocante de Church Street, em Manhantan, qualquer comparação ética se torne, a este nível, indecente.


No 11 de Setembro de 2001, quando vi na televisão o que os vídeos transmitiam, isso recordou-me imediatamente o 6 de Agosto de 1945. Com efeito, foi nesse dia à noite que nós europeus, soubemos da notícia do bombardeamento de Hiroxima.

Entre estes dois acontecimentos há óbvias correspondências, nomeadamente uma bola de fogo que cai sem avisar de um céu sem nuvens, tendo ambos os ataques sido projectados de modo a ocorrerem à hora em que os civis das cidades escolhidas vão de manhã para o trabalho, em que as lojas abrem, em que as crianças se encontram na escola preparando as lições. Em ambos há uma idêntica redução a cinzas, corpos lançados pelos ares e transformados em destroços. Uma mesma incredulidade e um mesmo caos provocados por uma nova arma de destruição utilizada pela primeira vez – a bomba A há sessenta anos, um avião de passageiros no Outono passado. No epicentro de ambas as ocorrências, sobre todas as coisas e sobre toda a gente, um espesso sudário de pó.

Obviamente, as diferenças de escala e de contexto são enormes. Em Manhantan o pó não era radioactivo. Em 1945, havia então três anos que os Estados Unidos levavam a cabo uma verdadeira guerra contra o Japão. Mas nem por isso deixa de ser verdade que os dois ataques foram concebidos para servir de aviso.


Perante um e o outro, ficou a saber-se que a partir dali o mundo já não era o mesmo mundo: os riscos que por toda a parte são inerentes à vida sofreram uma metamorfose na aurora de um novo dia que amanhecia sem nuvens.


As bombas lançadas sobre Hiroxima e Nagasáqui anunciaram que os Estados Unidos passavam a ser a suprema potência militar do mundo. O ataque do 11 de Setembro anunciou que esta potência já não tem no seu próprio solo uma invulnerabilidade garantida. Estes dois acontecimentos assinalam o início e o fim de um certo período histórico.

Os mais agudos comentários e análises, e também os mais angustiados, da resposta do presidente George W. Bush ao 11 de Setembro – aquilo a que chamou “Guerra contra o Terrorismo”, primeiro crismada “Justiça Infinita” e depois baptizada “Liberdade Imutável” – foram exprimidos e escritos por cidadãos dos Estados Unidos.


A acusação de antiamericanismo feita contra os que se opõem formalmente aos decisores em funções em Washington é de tão curtas vistas como a política que nós pomos em causa. Há incontáveis cidadãos dos Estados Unidos que são antiamericanos e de quem nós somos solidários.

Há também numerosos cidadãos estadunidenses que apoiam a política de Bush, incluindo sessenta intelectuais que recentemente assinaram uma declaração em que procuram definir o que é em geral uma guerra “justa” e por que razão, em particular, se justificam a operação “Liberdade Imutável” no Afeganistão e a guerra contra o terrorismo.


Adiantam estes intelectuais o argumento de que uma guerra é “justa”, ou moralmente justificada, quando o seu objectivo consiste em defender do mal os inocentes. Citam Santo Agostinho. Acrescentando que semelhante guerra, na medida do possível, deverá respeitar a imunidade dos não combatentes.

Se lermos esta declaração com toda a inocência (sabendo, é claro, que ela não foi redigida espontaneamente nem de modo inocente), o texto faz-nos pensar numa reunião de peritos pacientes e eruditos, exprimindo-se com discrição, tendo por sua conta uma vasta biblioteca (talvez até uma piscina entre cada sessão de trabalho) e dispondo do tempo todo para reflectir com calma, para discutir as reservas que uns e outros emitem, chegando por fim a um acordo em que resumem o juízo de todos sobre a questão.


Ressalta também dessa declaração a ideia de uma tal reunião de peritos que terá decorrido algures numa espécie de mítico hotel de Seis Estrelas (com acesso reservado a helicópteros) situado num parque espaçoso mas igualmente cercado de altas muralhas, provido de guardas e com pontos de controlo policiais. Lugar esse onde não pode haver o mínimo contacto entre tais pensadores e a população local, e onde os encontros resultantes do acaso são impossíveis. Resultando pois de semelhantes circunstâncias que aquilo que realmente ocorreu na história e aquilo que hoje se passa para além das paredes do hotel não é tido como um dado legítimo, não sendo, por conseguinte, levado em linha de conta. Trata-se aqui de uma ética para turistas de luxo, protegidos do mundo exterior.

Mas voltemos ao Verão de 1945. Nessa altura haviam já sido destruídas pelo fogo, na sequência de bombardeamentos com napalm, sessenta e seis das maiores cidades japonesas. Em Tóquio um milhão de civis encontrava-se sem tecto e 100 mil pessoas tinham sido mortas. Essas pessoas, para retomarmos a expressão do general-de-divisão Curtis Lemay, responsável dessas operações de bombardeamentos pelo fogo, haviam sido “grelhadas, fervidas e cozidas até à morte”. O filho do presidente Franklin Roosevelt, que era também seu confidente, declarara que os bombardeamentos deviam continuar “até termos destruído mais ou menos metade da população civil japonesa”. A 18 de Julho o imperador do Japão telegrafa ao presidente Truman que entretanto sucedera a Roosevelt, para pedir mais uma vez a paz. A mensagem será ignorada.

Uns dias antes do bombardeamento de Hiroxima, o vice-almirante Radford alardeia a sua bazófia: “O Japão vai acabar por ser uma nação sem cidades – um povo de nómadas”.

A bomba que explodiu por cima de um hospital no centro da cidade matou de uma penada 100 mil pessoas, das quais 95 por cento eram civis. Na sequência da bomba, 100 mil outras irão morrer lentamente dos efeitos da irradiação.

“Há dezasseis horas”, anunciou o presidente Truman, “um avião americano lançou uma bomba sobre Hiroxima, importante base militar japonesa”. Um mês depois, a primeira reportagem não censurada – do corajoso jornalista australiano Wilfred Burchett – descreve os indizíveis sofrimentos que o autor testemunhou ao visitar naquela cidade um hospital improvisado.

O general Groves, então director militar do Projecto Manhanttan, projecto este cuja missão consistia em planificar e produzir a bomba, apressou-se a tranquilizar os membros do Congresso dizendo-lhes que as radiações não provocavam “nenhum sofrimento excessivo” e que “na realidade, segundo nos dizem, constituem uma forma muito agradável de morrer”.


Em 1946, o inquérito sobre os bombardeamentos estratégicos efectuados pelos Estados Unidos conclui que “o Japão ter-se-ia rendido mesmo que as bombas atómicas não tivessem sido lançadas”.

Naturalmente, descrever desta maneira uma tal sequência de acontecimentos é simplificar em exagero. O Projecto Manhanttan foi criado em 1942, na altura em que Hitler triunfava e em que era muito sério o risco de serem investigadores alemães os primeiros a produzir bombas atómicas. Por outro lado, a decisão americana de lançar duas bombas sobre o Japão na altura em que esse risco já não existia tem de ser vista no contexto das atrocidades cometidas pelas forças japonesas através do sudeste asiático e do ataque surpresa a Peal Harbour em Dezembro de 1941. Certos chefes militares americanos e certos cientistas que trabalhavam no Projecto Manhanttan fizeram quanto estava ao seu alcance para dissuadir Truman de tomar uma decisão de tão pesadas consequências ou, pelo menos, para a retardar.

No fim de contas, porém, após tudo ter sido dito e feito, foi impossível celebrar a rendição incondicional do Japão a 14 de Julho – ela aliás não foi sem condições – como uma vitória longamente desejada. No âmago dessa rendição reinavam a angústia e a cegueira.


Esta história tem por fim mostrar a que ponto sessenta pensadores norte-americanos, no seu mítico Hotel de Seis Estrelas, chegam a ser estranhos até à realidade da sua própria história nacional. Tem também por fim lembrar que o período de supremacia militar americana iniciado em 1945 começou, para todos quantos se situam fora da órbita norte-americana, com uma ofuscante demonstração de potência longínqua, impiedosa mas cheia de ignorância. O presidente Bush deveria ter em mente tais factos quando pergunta “Por que razão nos odeiam eles?”. Mas como o poderá fazer? É ele um dos directores do Hotel de Seis Estrelas e nunca de lá sai.”

BERGER, John, “De Hiroxima às Twin Towers”, Le Monde Diplomatique, nº42, 2002