A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sexta-feira, outubro 08, 2004

A Resposta da Fraqueza

Os políticos que estão neste momento no poder no PSD (no PS e no PP) fizeram uma parte muito importante da sua carreira na comunicação social. É normal que assim seja, porque hoje a maioria das carreiras políticas implicam uma relação muito próxima com os "media". Não é uma regra absoluta, mas as excepções apenas a confirmam.
Apesar deste truísmo, a verdade é que as carreiras feitas nos últimos anos em Portugal reflectem, por simbiose, as mesmas características da evolução mediática, as forças e defeitos da comunicação social, do mesmo modo que esta reflecte, muito mais do que se imagina, as fragilidades políticas do país. A carreira comunicacional do primeiro-ministro mostra bem as tendências nos últimos anos: a progressiva espectacularização da comunicação social, com o aparecimento de "reality shows" (participando num concurso televisivo, na Cadeira do Poder), a futebolização da televisão (foi comentador desportivo) e o "boom" da imprensa do coração, onde é notícia habitual e participante activo. Outros aspectos estão também presentes: a assunção pelos políticos do seu papel como "fontes" no jogo da intriga partidária, a utilização a seu favor de falsas colunas de opinião (como era a do "Diário de Notícias") ou de debates promocionais e pouco adversariais (como eram os da RTP).
Não surpreende por isso que, logo desde o início, o primeiro-ministro, coerente com a atenção que sempre tinha dado ao seu próprio "marketing" e publicidade, mostrasse uma verdadeira obsessão com a comunicação social e com a sua imagem. Nos primeiros dias, desdobrou-se em declarações, directos, exclusivos negociados, convencido de que dominava pela palavra a realidade. O resultado acabou por se revelar contraproducente, indiciando a sua pouca preparação para o cargo. Na avalanche de contradições, a que as suas declarações deram origem, entrou em conflito com os ministros que sabiam alguma coisa do que estavam a fazer. Refinaria, taxas moderadoras, deslocalizações de secretarias de Estado, situação do concurso de professores, etc., cada declaração gerava controvérsia, remendos e remendos de remendos. Um bizarro comunicado, a que ninguém deu a atenção que devia, foi emitido pretendendo "explicar" todas estas contradições. Depois surgiram as notícias sobre as contratações de profissionais de imagem e assessores de imprensa, pagos a peso de ouro, assim como o recurso generalizado a firmas de relações públicas. Uma circular vinda do gabinete do primeiro-ministro pedia aos ministros para lhe revelarem a sua "agenda mediática" e quais os contactos que tinham com jornalistas. Tudo convergia para uma célebre "central de informações" que o Governo estaria a preparar.
Se somarmos a tudo isto o controlo da televisão e da rádio públicas, que já vinha do anterior Governo, as mudanças que se estão a dar nas chefias no grupo Lusomundo dependente da PT, colocando todo seu sector mediático sob o controlo de Luís Delgado, um jornalista cuja promoção não tem outra explicação que não seja o seu proselitismo político, usando instrumentos que o PS preparou com o mesmo objectivo de controlo, o panorama é preocupante. Existem ainda suspeitas de pressões políticas e económicas sobre os grupos empresariais de comunicação, para que se "portem bem", escassamente conhecidas fora das administrações do sector e escapando ao escrutínio público.
É verdade que tudo isto tem funcionando muito mal, porque a incompetência instalada é muita, mas temo que a prazo, e com muito dinheiro gasto, possa funcionar bem. Os instrumentos estão lá, as pessoas escolhidas a dedo também. Nessa altura teremos um real problema de pluralidade de expressão, que aliás também se chegou a esboçar no tempo do engenheiro Guterres. Mais uma vez se verifica que o nosso estado tem uma presença excessiva na comunicação social, que tudo está demasiado partidarizado e que quem tem o poder nunca o cede e usa-o. O PS fê-lo, o PSD está agora a fazê-lo.
Sobra o "problema Marcelo". Por razões de mérito próprio e conjunturais, a crise do PS, num período crucial para a "primeira impressão" da imagem governativa e do primeiro-ministro, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido o mais eficaz crítico da governação. A sua voz, vinda de um membro proeminente do partido no poder, de um desejado candidato presidencial, pelo próprio primeiro-ministro, faz estragos consideráveis, quer pela sua capacidade comunicacional, quer pelo conhecimento que tem dos meandros da governação, quer pela comunidade da sua tipologia analítica com a maioria dos portugueses que se interessam por política. A começar pelos jornalistas e pelos militantes partidários, o que garante um eco vastíssimo.
Grande parte do seu sucesso vem desta comunidade entre o seu discurso e o da comunicação social, onde a maioria dos jornalistas aprendeu a fazer um determinado tipo de discurso analítico na escola do "Expresso": cenários, factos políticos, calendário, "saber comunicar" / "não saber", etc. O mesmo tipo de influência estendeu-se aos militantes partidários, que nas suas "análises" imitam o estilo de Marcelo. Qualquer aspirante da JSD ou da JS fala como um pequeno Marcelo, repetindo-lhe os truques e o estilo, ao seu nível de competência. Isto dá-lhe uma influência enorme.
Podem colocar-se muitas reservas ao que Marcelo faz, umas de carácter formal, outras de conteúdo. Mas sejam quais forem as objecções que se possam fazer à elocução de Marcelo, a verdade é que ela resulta de um acordo entre uma estação de televisão privada e um comentador que nunca pretendeu ser isento nas suas opções políticas. O problema do contraditório só tem sentido antes de tudo na televisão pública e depois numa análise mais larga sobre a pluralidade de expressão no conjunto dos "media". O que não pode é servir como contestação ao impacto de Marcelo, que não se deve apenas à extensão do seu tempo de antena solitário. Não há ninguém com 45 minutos de conversa dominical na televisão portuguesa, porque no actual momento não existe ninguém capaz de trazer as audiências que Marcelo dá à TVI. Pode-se dizer que isto nem sempre foi assim e que Marcelo no início era um peso nas audiências do telejornal e só passado muito tempo passou a ser uma vantagem, mas isso só mostra o mérito do próprio e da TVI que investiu num "produto" de qualidade, com o tempo necessário para ele se "fazer".
Tudo isto vem a propósito das declarações insensatas do ministro dos Assuntos Parlamentares que, como é óbvio, falou pelo primeiro-ministro e que apelou à censura de Marcelo. O que é grave nessas declarações é que elas sugerem um delito de opinião e não um abuso de liberdade de imprensa: "Nem o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda juntos conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo como esse comentador [Marcelo Rebelo de Sousa] que, sob a capa de comentário político, transmite sistematicamente um conjunto de mentiras com desfaçatez e sem qualquer vergonha." Quando um membro do Governo apela a que a Alta-Autoridade para a Comunicação Social interfira na liberdade de opinião, tal como é expressa numa televisão privada, está a exigir censura do que lhe é incómodo.
Marcelo é previsível nas suas críticas e nos seus silêncios, nos seus venenos e nos seus ajustes de contas, nas suas verdades e nas suas meia-verdades, só que uma coisa é ter do outro lado alguém convicto do que está a fazer, ou sabendo o que está a fazer, e outra alguém que se desintegra de medo perante o "professor". Esta é que é a questão, e é por isso que calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia. Controlo e censura são respostas da fraqueza.
P.S. - Este texto foi escrito antes de ter sido anunciado que Marcelo Rebelo de Sousa já não fará mais comentários na TVI, na sequência de uma reunião a pedido de Miguel Paes do Amaral, presidente da Media Capital.
PEREIRA, José Pacheco, "A Resposta da Fraqueza", Público, 7 de Outubro de 2004