Cadilhos e Caudilhos
Ter a tentação de abandonar o Governo porque o chefe do Estado considera que ele está ferido de "falta de credibilidade" é mais ou menos a mesma coisa que ir roubar carteiras para o Metro para provar a sua honestidade.
Em termos emocionais, todos podemos compreender a tentação de Santana Lopes, pois todos já tivemos vontade de deixar cair a meio uma tarefa particularmente dura e ingrata, por cuja execução somos criticados e onde nos sentimos incompreendidos. Em termos técnicos, e para usar o vocabulário específico das ciências políticas, essa tentação dá pela designação de "birra". O que Santana Lopes conseguiu mais uma vez tornar evidente ao país, com fogo-de-artifício e petardos, com fanfarra e sirenes a apitar, foi a sua total falta de qualidades pessoais para estar à frente do barco - qualquer barco - e muito menos para assumir a liderança de um Governo - qualquer Governo. Santana Lopes dá-se mal com o stress, com a responsabilidade, com a disciplina, com o trabalho, com as críticas. E como não tem aqueles grandes objectivos que fazem a persistência dos homens políticos, não vê nenhuma razão para suportar esse stress, essas responsabilidades, essas críticas. Para Santana Lopes, com o seu típico solipsismo, ser primeiro-ministro é apenas uma ocupação, que até pode ser muito gira. Mas se não lhe der prazer já não vê razão para continuar nem mais um dia.
2. De uma coisa Santana Lopes pode ter a certeza: o seu consulado conquistou um lugar na história. Não foi pelas boas razões, mas um lugar na história é melhor que nada. Além da tentação do abandono, este período ficou marcado (apenas para falarmos dos episódios mais recentes) por uma dissolução do Parlamento decidida pelo Presidente da República mas comunicada pelo primeiro-ministro à nação frente às câmaras de televisão; pela mesma dissolução ter sido comunicada a toda a gente menos ao presidente do órgão dissolvido, um lapso que este desculpou com um sentido de responsabilidade institucional digno de nota; e ainda por uma demissão do Governo anunciada numa reunião partidária também às câmaras de televisão 48 horas antes de ter sido comunicada ao Presidente da República. Nem todas as "gaffes" são da responsabilidade de Santana Lopes, mas há algo claramente santanista em todos estes episódios, há algo em todos eles que decorre de um ambiente instilado por este Governo onde reina não só o improviso e a ligeireza mas também a provocação e a falta de urbanidade.
3. Outro fruto da mesma árvore foi o epíteto com que Morais Sarmento quis brindar o Presidente da República na entrevista concedida há dias ao "Diário Económico". Chamar "caudilho" ao Presidente é evidentemente um insulto político, mas que o ministro o avance para em seguida recuar e se refugiar debaixo das saias da etimologia reúne o pior de dois mundos.
A simples escolha da palavra constituiu um ataque político. "A posteriori" Morais Sarmento podia ter decidido substantivá-lo ou retirá-lo, desculpando-se pela violência involuntária de uma escolha de palavras infeliz. Mas mantê-lo dizendo que não está a usar a expressão na sua acepção política e que a palavra não quer dizer o que quer dizer não é dignificante.
Caudilho pode ter querido dizer líder militar (partilha a sua raiz latina com "capitão", por exemplo), mas a evolução semântica do substantivo passa inevitavelmente por Franco (que escolheu a designação para si seguindo o exemplo do Duce e do Führer) e significa um chefe que retira a sua legitimidade não da lei ou do voto mas da força, que é o único intérprete dos desejos do povo, que não partilha o poder, que baseia o seu domínio num culto da personalidade. Um caudilho é um ditador. Se Morais Sarmento quis dizer isso que o diga, que o assuma (por disparatado que seja aplicar a expressão a Sampaio) e que tente justificá-la politicamente. Se não foi isso que quis dizer, nós percebemos. Afinal há tantas palavras que é difícil saber o significado de todas.
Em termos emocionais, todos podemos compreender a tentação de Santana Lopes, pois todos já tivemos vontade de deixar cair a meio uma tarefa particularmente dura e ingrata, por cuja execução somos criticados e onde nos sentimos incompreendidos. Em termos técnicos, e para usar o vocabulário específico das ciências políticas, essa tentação dá pela designação de "birra". O que Santana Lopes conseguiu mais uma vez tornar evidente ao país, com fogo-de-artifício e petardos, com fanfarra e sirenes a apitar, foi a sua total falta de qualidades pessoais para estar à frente do barco - qualquer barco - e muito menos para assumir a liderança de um Governo - qualquer Governo. Santana Lopes dá-se mal com o stress, com a responsabilidade, com a disciplina, com o trabalho, com as críticas. E como não tem aqueles grandes objectivos que fazem a persistência dos homens políticos, não vê nenhuma razão para suportar esse stress, essas responsabilidades, essas críticas. Para Santana Lopes, com o seu típico solipsismo, ser primeiro-ministro é apenas uma ocupação, que até pode ser muito gira. Mas se não lhe der prazer já não vê razão para continuar nem mais um dia.
2. De uma coisa Santana Lopes pode ter a certeza: o seu consulado conquistou um lugar na história. Não foi pelas boas razões, mas um lugar na história é melhor que nada. Além da tentação do abandono, este período ficou marcado (apenas para falarmos dos episódios mais recentes) por uma dissolução do Parlamento decidida pelo Presidente da República mas comunicada pelo primeiro-ministro à nação frente às câmaras de televisão; pela mesma dissolução ter sido comunicada a toda a gente menos ao presidente do órgão dissolvido, um lapso que este desculpou com um sentido de responsabilidade institucional digno de nota; e ainda por uma demissão do Governo anunciada numa reunião partidária também às câmaras de televisão 48 horas antes de ter sido comunicada ao Presidente da República. Nem todas as "gaffes" são da responsabilidade de Santana Lopes, mas há algo claramente santanista em todos estes episódios, há algo em todos eles que decorre de um ambiente instilado por este Governo onde reina não só o improviso e a ligeireza mas também a provocação e a falta de urbanidade.
3. Outro fruto da mesma árvore foi o epíteto com que Morais Sarmento quis brindar o Presidente da República na entrevista concedida há dias ao "Diário Económico". Chamar "caudilho" ao Presidente é evidentemente um insulto político, mas que o ministro o avance para em seguida recuar e se refugiar debaixo das saias da etimologia reúne o pior de dois mundos.
A simples escolha da palavra constituiu um ataque político. "A posteriori" Morais Sarmento podia ter decidido substantivá-lo ou retirá-lo, desculpando-se pela violência involuntária de uma escolha de palavras infeliz. Mas mantê-lo dizendo que não está a usar a expressão na sua acepção política e que a palavra não quer dizer o que quer dizer não é dignificante.
Caudilho pode ter querido dizer líder militar (partilha a sua raiz latina com "capitão", por exemplo), mas a evolução semântica do substantivo passa inevitavelmente por Franco (que escolheu a designação para si seguindo o exemplo do Duce e do Führer) e significa um chefe que retira a sua legitimidade não da lei ou do voto mas da força, que é o único intérprete dos desejos do povo, que não partilha o poder, que baseia o seu domínio num culto da personalidade. Um caudilho é um ditador. Se Morais Sarmento quis dizer isso que o diga, que o assuma (por disparatado que seja aplicar a expressão a Sampaio) e que tente justificá-la politicamente. Se não foi isso que quis dizer, nós percebemos. Afinal há tantas palavras que é difícil saber o significado de todas.
MALHEIROS, José Vitor, " Cadilhos e Caudilhos",Público,14 de Dezembro de 2004
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