A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

segunda-feira, janeiro 03, 2005

O Mundo nas mãos

“Quando o vice-presidente americano Dick Cheney afirmou que «a guerra ao terrorismo» poderia durar cinquenta anos ou mais, as suas palavras evocaram a grande obra profética de George Orwell, 1984. Ao que parece, teremos que viver na ameaça e ilusão da guerra permanente, de forma a justificar o aumento do controlo sobre a sociedade e a repressão por parte do Estado; e isto enquanto o Grande Poder persegue o seu objectivo de supremacia global. Washington é transformada em «cidade principal da Airstrip One*», e a culpa de todos os problemas é lançada sobre o «inimigo», o malvado Goldstein, como lhe chamava Orwell. Esse inimigo tanto poderia ser Osama Bin Laden, como os seus sucessores, agrupados no «Eixo do Mal».
Em 1984, três slogans dominavam a sociedade: guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força. O slogan de hoje, «guerra ao terrorismo», inclui igualmente uma inversão de significado. A guerra é terrorismo. A arma mais potente nesta guerra é a pseudo-informação, que difere, relativamente às descrições de Orwell, unicamente na forma, atirando para o esquecimento verdades inaceitáveis e o senso comum histórico. A dissidência é permissível dentro de limites «consensuais», reforçando a ilusão de que a informação e o discurso são «livres».
Os ataques de 11 de Setembro de 2001 não «mudaram tudo», mas aceleraram a continuidade dos acontecimentos, proporcionando um extraordinário pretexto para destruir a democracia social. O trabalho de enfraquecimento da Bill of Rights nos Estados Unidos, em conjunto com o desmantelamento dos julgamentos com júri e de uma enorme diversidade de liberdades correlacionadas, fazem parte da redução da democracia ao ritual eleitoral: isto é, à competição entre partidos, impossíveis de distinguir, pela administração de um Estado de ideologia única.
Cruciais para o crescimento deste «Estado empresarial» são os conglomerados de comunicação social, detentores de um poder sem precedentes, incluindo Imprensa e Televisão, publicações de livros, produção cinematográfica e bases de dados. Eles fornecem um mundo virtual de «eterno presente», como o designou a revista Time: política via média, guerra via média, justiça via média, e mesmo luto via média (Princesa Diana).
A «economia global» constitui o seu mais importante empreendimento de comunicação social. «Economia global» é um moderno termo orwelliano. À superfície, designa transacções financeiras instantâneas, telemóveis, McDonalds’s, Starbucks, férias marcadas via Internet. Sob este brilho, porém, representa a globalização da pobreza, um mundo em que 6000 crianças morrem todos os dias de diarreia, devido ao facto de a grande maioria delas não dispor de água potável.
Neste mundo, que não é observado pela maioria de nós, habitantes do Norte global, um sofisticado sistema de rapina forçou mais de noventa países, desde os anos 80, a programas de «ajustamento estrutural», alargando, como nunca até hoje, o fosso entre ricos e pobres. Este sistema é designado por «construção de nações» (nation building) e «bom governo», pelo «quarteto» que domina a Organização Mundial de Comércio ( Estados Unidos, Europa, Canadá e Japão) e pelo triunvirato de Washington (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Departamento do tesouro dos EUA), que controlam até mesmo aspectos de pormenor das políticas governamentais dos países em vias de desenvolvimento. O seu poder provém em grande medida de uma dívida impossível de saldar, que força os países pobres a pagar todos os dias 100 mil milhões de dólares aos seus credores ocidentais. O resultado é um mundo em que uma elite de menos de mil milhões de pessoas controla 80% das riquezas da Humanidade.”

*Referência à obra de George Orwell, The Road to Airstrip One
PILGER, John, O mundo nas mãos, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2004.p.13