Resposta de Naomi Klein a David T. Johnson
David T Johnson, Embaixador em exercício, Embaixada dos Estados Unidos Londres
Caro Sr. Johnson, no dia 26 de Novembro, o seu conselheiro para a imprensa enviou uma carta ao Guardian protestando vigorosamente contra uma frase na minha coluna desse mesmo dia. A frase era a seguinte: “No Iraque, as forças norte-americanas e as dos seus anfitriões deixaram de se preocupar em ocultar os seus ataques a alvos civis e estão a eliminar abertamente todos aqueles – médicos, padres, jornalistas – que se atrevem a contar os cadáveres”. A sua maior preocupação dizia respeito à palavra “eliminar”. A carta sugeria que a minha acusação era “desprovida de fundamentos” e pedia ao Guardian para a desmentir ou para apresentar “provas desta acusação extremamente grave”. É muito raro que funcionários da embaixada americana se envolvam abertamente com a imprensa livre de um país estrangeiro e, por isso, tomei esta carta muito a sério. Mas embora concorde em que a acusação é grave, não tenho a menor intenção de a desmentir. Ao invés disso, apresento aqui as provas que pediu.
Caro Sr. Johnson, no dia 26 de Novembro, o seu conselheiro para a imprensa enviou uma carta ao Guardian protestando vigorosamente contra uma frase na minha coluna desse mesmo dia. A frase era a seguinte: “No Iraque, as forças norte-americanas e as dos seus anfitriões deixaram de se preocupar em ocultar os seus ataques a alvos civis e estão a eliminar abertamente todos aqueles – médicos, padres, jornalistas – que se atrevem a contar os cadáveres”. A sua maior preocupação dizia respeito à palavra “eliminar”. A carta sugeria que a minha acusação era “desprovida de fundamentos” e pedia ao Guardian para a desmentir ou para apresentar “provas desta acusação extremamente grave”. É muito raro que funcionários da embaixada americana se envolvam abertamente com a imprensa livre de um país estrangeiro e, por isso, tomei esta carta muito a sério. Mas embora concorde em que a acusação é grave, não tenho a menor intenção de a desmentir. Ao invés disso, apresento aqui as provas que pediu.
Em Abril, as forças norte-americanas cercaram Faluja em retaliação pelas horríveis mortes de quatro empregados da Blackwater. A operação foi um fracasso, acabando as tropas americanas por deixar a cidade em poder das forças de resistência. A razão para a retirada foi que o cerco desencadeou revoltas por toda a região, despoletadas pelas notícias de que tinham sido mortos centenas de civis. Estas informações provieram de três fontes principais: 1) Médicos. O USA Today noticiava em 11 de Abril que “As estatísticas e os nomes dos mortos tinham sido recolhidas em quatro das principais clínicas nos arredores da cidade e no principal hospital de Faluja”. 2) Jornalistas da TV árabe. Se, por um lado, foram os médicos a informar o número de mortos, por outro, foram a al-Jazeera e a al-Arabiya que deram um rosto humano a essas estatísticas. Com equipas de operadores de câmaras independentes em Faluja, ambos os canais de televisão exibiram a todo o Iraque e a todo o mundo de língua árabe imagens de mulheres e crianças mutiladas. 3) Clérigos. Os relatos de um grande número de vítimas feitos pelos jornalistas e médicos foram repetidos por clérigos eminentes do Iraque. Muitos deles fizeram prédicas exaltadas, condenando o ataque, o que virou os membros das suas congregações contra as forças americanas e inflamou a revolta que forçou as tropas americanas a retirar. As autoridades americanas negaram que tivessem sido mortos centenas de civis durante o cerco de Abril passado, e atacaram as fontes dessas notícias. Por exemplo, um “oficial superior americano” não identificado, falando ao New York Times no mês passado, rotulou o hospital de Falluja como “um centro de propaganda”. Mas as palavras mais violentas foram reservadas para os canais da TV árabe. Quando lhe pediram para se pronunciar sobre as notícias da al-Jazeera e da al-Arabiya de que tinham sido mortos centenas de civis em Faluja, Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa americano, respondeu que “aquilo que a al-Jazeera anda a fazer é depravado, inexacto e imperdoável...” No mês passado, as tropas americanas voltaram a cercar Faluja – mas desta vez o ataque incluiu uma nova táctica: eliminar os médicos, os jornalistas e os clérigos que haviam atraído a atenção do público para as vítimas civis no ataque anterior.
ELIMINANDO MÉDICOS A primeira operação importante feita pelos marines americanos e pelos soldados iraquianos foi atacar o hospital principal de Falluja, prender médicos e colocar as instalações sob controlo militar. The New York Times noticiou que “o hospital foi escolhido como um primeiro alvo porque os militares americanos consideravam que ele fora a fonte de rumores sobre o grande número de vítimas”, sublinhando que “desta vez, os militares americanos tencionam travar a sua batalha da informação, reagindo ou silenciando o que havia sido uma das mais potentes armas dos rebeldes”. The Los Angeles Times citou um médico a dizer que os soldados “roubaram os telemóveis” no hospital – impedindo os médicos de comunicar com o mundo exterior. Mas este não foi o pior dos ataques aos trabalhadores da saúde. Dois dias antes, uma clínica de emergência crucial foi bombardeada até se transformar em entulho, bem como abastecimentos médicos no dispensário na porta ao lado. O dr. Sami al-Jumaili, que estava a trabalhar na clínica, afirma que as bombas ceifaram as vidas de 15 médicos, quatro enfermeiras e 35 pacientes. The Los Angeles Times relatou que o administrador do hospital geral de Faluja "havia contando a um general americano a localização do centro médico provisório no centro da cidade" antes de este ser alvejado. Quer a clínica tenha sido alvejada expressamente, quer destruída acidentalmente, o efeito foi o mesmo: eliminar muitos médicos de Faluja da zona de guerra. Tal como disse o dr. Jumaili ao Independent no dia 14 de Novembro: “Não há um único cirurgião em Faluja”. Quando a luta avançou para Mosul, utilizou-se uma táctica idêntica: quando entraram na cidade, as forças americanas e iraquianas assumiram de imediato o controlo do hospital de al-Zaharawi.
ELIMINAÇÃO DE JORNALISTAS As imagens do mês passado do cerco a Falluja provieram quase exclusivamente de repórteres contratados pelas tropas americanas. Isto porque os jornalistas árabes que haviam feito a cobertura do cerco de Abril numa perspectiva civil foram efectivamente eliminados. A al-Jazeera não tinha câmaras no terreno porque fora proibida indefinidamente de actuar no Iraque. A al-Arabiya teve de facto um repórter independente em Falluja, Abdel Kader Al-Saadi, mas a 11 de Novembro as forças americanas prenderam-no e mantiveram-no detido enquanto durou o cerco. A detenção de Al-Saadi foi condenada pelos Repórteres Sem Fronteiras e pela Federação Internacional dos Jornalistas. “Não podemos ignorar a possibilidade de ele estar a ser intimidado apenas por tentar fazer o seu trabalho,” declarou a FIJ. Não é a primeira vez que jornalistas no Iraque enfrentam este tipo de intimidação. Quando as forças americanas invadiram Bagdad em Abril de 2003, o Comando Central americano incitou todos os jornalistas independentes a abandonarem a cidade. Alguns insistiram em ficar e pelo menos três deles pagaram com as suas vidas. No dia 8 de Abril, um avião americano bombardeou os escritórios da al-Jazeera em Bagdad, matando o repórter Tareq Ayyoub. A al-Jazeera tem documentação que prova ter ele fornecido às forças americanas as coordenadas da sua localização. No mesmo dia, um tanque americano fez fogo sobre o Hotel Palestina, matando José Couso, do canal Telecinco da TV espanhola, e Taras Protsiuk, da Reuters. Três soldados americanos enfrentam agora um processo crime posto pela família de Couso, a qual alega que as forças americanas sabiam muito bem que os jornalistas se encontravam no Hotel Palestina e cometeram um crime de guerra.
ELIMINAÇÃO DE CLÉRIGOS Tal como foram visados médicos e jornalistas, também o foram muitos dos clérigos que protestaram veementemente contra os assassinatos em Faluja. No dia 11 de Novembro, foi preso o Sheik Mahdi al-Sumaidaei, responsável pela Associação Suprema para Direcção e do partido Daawa (Supreme Association for Guidance and Daawa]. Segundo a Associated Press, “al-Sumaidaei incitou a minoria sunita a desencadear uma campanha de desobediência civil se o governo iraquiano não fizesse parar o ataque a Faluja”. No dia 19 de Novembro, a AP noticiou que as forças americanas e iraquianas assaltaram uma importante mesquita sunita, a Abu Hanifa, em Aadhamiya, matando três pessoas e prendendo outras 40, incluindo o clérigo principal – outro opositor do cerco a Falluja. No mesmo dia, a Fox News noticiou que “as tropas americanas também invadiram uma mesquita sunita em Qaim, perto da fronteira síria”. A notícia descrevia as prisões como sendo “uma retaliação pela oposição à ofensiva contra Falluja”. Também foram presos nas últimas semanas dois clérigos xiitas, relacionados com o dirigente Moqtada al-Sadr; segundo a AP, “ambos haviam protestado contra o ataque a Faluja”. “Nós não contamos corpos”, disse o general Tommy Franks do Comando Central norte-americano. A pergunta é: o que é que acontece às pessoas que insistem em contar os corpos – os médicos que têm de declarar a morte dos seus doentes, os jornalistas que documentam essas perdas, os clérigos que as denunciam? No Iraque, acumulam-se as provas de que essas vozes estão a ser sistematicamente silenciadas por muitos e diversos meios, desde as prisões em massa, até à invasão de hospitais, boicote aos meios de comunicação e ataques físicos bem visíveis e sem explicação.
Sr. Embaixador, creio que o seu governo e os seus anfitriões iraquianos estão a travar duas guerras no Iraque. Uma é contra o povo iraquiano e já custou cerca de 100 000 vidas. A outra é uma guerra contra as testemunhas.
[*] Jornalista, escritora e activista antiglobalização, canadiana. Pesquisa adicional de Aaron Maté
Publicado em The Guardian, 04/Dez/2004. Tradução de Margarida Ferreira.
O original encontra-se em www.nologo.org
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