A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sexta-feira, dezembro 24, 2004

O Teatro do Bem e do Mal

Na luta do Bem contra o Mal, é sempre o povo que apanha as favas. Os terroristas mataram trabalhadores de sessenta países em Nova Iorque e Washington, em nome do Bem contra o Mal. E em nome do Bem contra o Mal, o Presidente George Bush jurou vingança: “Vamos eliminar o Mal deste mundo”, anunciou.
Eliminar o Mal? O que seria do Bem sem o Mal? Não são só os fanáticos religiosos que precisam de inimigos para justificar a sua existência. Os Bons e os maus, os maus e os bons: os actores trocam de máscaras, os heróis tornam-se monstros e os monstros heróis, segundo as exigências daqueles que escrevem o drama..
Não há nada de novo nisto. O cientista alemão Werner Von Braun foi mau quando inventou os foguetes V-2 que Hitler lançou sobre Londres, mas passou a ser um bom no dia em que começou a dirigir o Império do Mal. Nos anos da Guerra Fria, John Steinbeck escreveu: “Pode ser que toda a gente precise de russos. Aposto que até na Rússia eles precisam de russos. Talvez lhes chamem lá americanos”. Depois os russos tornaram-se os bons. Hoje, Vladimir Putine diz também:”O Mal deve ser punido”.
Saddam Hussein era bom, assim como as armas químicas que utilizava contra os iranianos e os curdos. Depois, passou a ser mau. Passou a chamar-se Satã Hussein quando os Estados Unidos, que acabavam de invadir o Panamá, invadiram o Iraque porque o Iraque tinha invadido o Kowait. Bush pai encarregou-se desta guerra contra o Mal. Com o espírito humanitário e pleno de compaixão que caracteriza a sua família, matou mais de cem mil iraquianos, na sua maioria civis.
Satã Hussein continua no seu posto, mas este inimigo número um perdeu o lugar e já só é número dois. A praga do mundo chama-se agora Osama Bin Laden. A CIA ensinou-lhe tudo o que ele sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais guerreiros da liberdade contra o comunismo no Afeganistão.
Bush pai ocupava a vice-presidência quando o Presidente Reagan declarou que estes heróis eram “o equivalente moral dos pais fundadores da América”. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Foi nessa época que se filmou o Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Hoje são os piores dos maus, no tempo de Bush filho, treze anos mais tarde.
Henry Kissinger foi um dos primeiros a reagir face à recente tragédia. “Tão culpados quanto os terroristas são aqueles que lhes deram apoio, financiamento e inspiração”, foi a sua sentença, retomada pelo Presidente Bush poucas horas mais tarde. Se assim é, devia-se começar por bombardear Kissinger. Ele será culpado de muitos mais crimes do que os cometidos por Bin Laden e por todos os terroristas que existem no mundo. E em muitos mais países: agindo por conta de vários governos americanos, levou “apoio, financiamento e inspiração” ao terrorismo de Estado na Indonésia, no Cambodja, no Chipre, nas filipinas, na África do Sul, no Irão, no Bangladesh, e nos países sul-americanos que sofreram a guerra suja do Plano Condor.
A 11 de Setembro de 1973, vinte e oito anos antes das chamas recentes, ardia o palácio presidencial no Chile. Kissinger tinha antecipado o epitáfio de Salvador Allende e da democracia chilena, comentando os resultados das eleições:”Nós não podemos aceitar que um país se torne marxista por causa da irresponsabilidade do seu povo”.
O desprezo pela vontade do povo é uma das muitas coincidências entre o terrorismo de Estado e o terrorismo privado. Por exemplo, a ETA, que mata em nome da independência do País Basco, diz através de um dos seus porta-vozes:”Os direitos não têm nada a ver com maiorias e minorias”.
Há muitos pontos comuns entre terrorismo artesanal e o terrorismo de alto nível tecnológico, entre o dos fundamentalistas religiosos e os fundamentalistas do mercado, o dos desesperados e o dos poderosos, o dos loucos isolados e o dos profissionais de uniforme. Todos partilham o mesmo desprezo pela vida humana: os assassinos dos cinco mil cidadãos esmagados sob os escombros das Torres Gémeas e os assassinos dos vinte mil guatemaltecos, na maioria indígenas, que foram exterminados sem que jamais a televisão ou os jornais do mundo lhes tenham prestado a mínima atenção.
Esses, os guatemaltecos, não foram sacrificados por nenhum fanático muçulmano, mas pelos militares terroristas que receberam “apoio, financiamento e inspiração” dos governos dos Estados Unidos.
Todos os amantes da morte coincidem também na sua obsessão em reduzir a termos militares as contradições sociais, culturais e nacionais. Em nome do Bem, da Verdade única, todos resolvem tudo matando primeiro e levantando as questões depois. Deste modo, acabam por favorecer o inimigo que combatem.
Foram as atrocidades do Sendero Luminoso que prepararam o terreno do Presidente Fujimori, que, com um considerável apoio popular, implantou um regime de terrror e vendeu o Peru por tuta-e-meia. Foram as atrocidades dos Estados Unidos no Médio Oriente que prepararam o terreno da guerra santa do terrorismo de Alá.
Embora agora o líder da civilização exorte a uma nova cruzada, Alá está inocente dos crimes que se cometem em seu nome.. afinal de contas, Deus não ordenou o holocausto nazi contra os fiéis de Jeová e não foi Jeová quem ditou o massacre de Sabra e Chatila, nem quem mandou expulsar os palestinianos da sua terra.
Uma tragédia de equívocos: já não se sabe quem é quem. O fumo das explosões faz parte de uma cortina de fumo bem mais espessa ainda, que nos impede de ver. De vingança em vingança, os terrorismos obrigam-nos a caminhar titubeando. Olho uma fotografia recente: numa parede de Nova Iorque alguém escreveu: “O olho por olho torna o mundo cego”. A violência gera violência e também a dor, o medo, o ódio e a loucura.
Em Porto Alegre, no início do ano, o argelino Ahmed Bem Bella avisava:”este sistema que já pôs as vacas loucas está a pôr as pessoas loucas”. E os loucos, loucos de ódio, agem da mesma maneira que o poder que os gerou. Luca, de três anos, comentava estes dias:”O mundo já não sabe onde fica a sua casa”. Estava a ver um mapa-múndi. Mas podia estar a ver o telejornal.

GALEANO, Eduardo,”O teatro do Bem e do Mal”, O Império em guerra, Porto, Campo das Letras, 2002.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eduardo Galeano - De Pernas para o Ar

http://livrodeeduardogaleano.blogspot.com/

12:37 da manhã

 

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