A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

domingo, outubro 17, 2004

Desfuturizar o futuro

Os jovens estão condenados ao trabalho precário, em condições de exploração e escravização crescentes

Temos de começar a fixar-lhe o nome, pois ele começou a fixar-nos a alma. A alma simboliza, aqui, o carácter, a postura, aquilo que nos engrandece e ensandece.
Trata-se de um jovem sociólogo chamado José Machado Pais que, contornando (daí a eficácia da sua estratégia) o intelectualmente, o cientificamente, o economicamente, o culturalmente, o politicamente correctos realizou um notabilíssimo estudo sobre a situação em que se encontra hoje a parte jovem da população portuguesa. Esse trabalho, a que deu o título (um primor de sarcasmo) de Ganchos, Tachos e Biscates ganhou já o Prémio Gulbenkian de Ciência 2003.
Com serenidade e rigor, o investigador puxou para o lado o véu diáfano da fantasia com que os responsáveis tentam cobrir a nudez fortíssima da realidade que envolve a faixa dos mais novos; e mostrou que os 6,4% de desempregados nela registados (taxa oficial) é um logro, pois o seu valor real situa-se nos 16,5%.
Outro logro é o quantitativo dos que, no grupo em causa, têm trabalho precário (dez vezes mais do que o divulgado), exercido em condições de deterioração, exploração, escravização crescentes.
Enquanto isso, metade dos que cumprem serviços (regulares) no mundo empresarial encontra-se contratada a prazo, ou a recibos verdes, ou sem uma coisa nem outra.
A mentalidade coelheira que enfatiza muitos entre nós – segundo a qual a salvação da Previdência está no incremento dos nascimentos – sofre, assim, um duro golpe: ela, a Previdência (aposentações, assistência, saúde, educação, subsídios) não será, nas actuais circunstâncias, revitalizada com boons de bebés; pelo contrário, as suas despesas ver-se-ão acrescidas pelas carências das novas crianças, primeiro, e dos jovens (em explosão) subempregados e desempregados, depois. Não é, na verdade, com biscates nem afazeres temporários (o estômago não funciona sazonalmente) que se vai a lado nenhum.
O défice da Previdência só se resolve, coisa que os políticos se esquivam a dizer, com trabalho estável, descontos limpos, redistribuição de benefícios, equilíbrio de obrigações.
O aumento da natalidade, e Portugal viu subi-la no ano passado 1,4%, mais 1 631 cidadãos, significa não melhoria das condições futuras de vida (18,8% das nossas crianças vivem abaixo da miséria) mas aumento de mais mão-de-obra barata e submissa, de carne fresca para canhões (voltamos, pela NATO, às guerras) e camas (a prostituição continua a ser uma galinha de ovos de oiro para o turismo).
A taxa de fecundidade nacional situar-se-á em 2050, por exemplo, nos 1,45%, sendo superior à dos italianos, espanhóis e gregos. Entretanto, a população mundial terá, nessa altura, duplicado (9,3 mil milhões de almas) enquanto os produtos agrícolas e a água diminuirão drasticamente, provocando três vezes mais pobres do que hoje.
Ninguém tem, aliás, o direito moral de se assenhorear dos seres humanos, das riquezas colectivas, dos recursos naturais, das matérias-primas. «Se continuar entregue a si mesmo, este sistema conduzir-nos-á à catástrofe», alerta o sociólogo francês Paul Fitoussi. «Os economistas fazem balanços falsos porque escamoteiam os custos económicos e sociais das medidas de austeridade que impõem.»
Sem cantar nem rir, os jovens encontram-se num labirinto no qual, por não lhe acharem a saída, se detiveram, se instalaram, desencadeando, na observação de Machado Pais, a «desfuturização do futuro», o que é gravíssimo para a sobrevivência do País.
À volta, os pais são excedentarizados, as famílias esfrangalhadas, as escolas convertidas em «parques de estacionamento de próximos desempregados».
De cada cinco crianças que nascem hoje, três jamais irão arranjar emprego. O trabalho que, passada a presente crise, se desenvolverá, é o trabalho para os pobres, para os jovens, para os imigrantes, para os de meia-idade e meia indiferenciação, gerando-se situações comparáveis às do século XIX. É a miséria que se mundializa, não é a riqueza.
José Machado Pais revela (antecipa) projecções desse cenário no presente – que os contentinhos do regime, os (bem) instalados nele e beneficiados por ele, no Governo e nas oposições, não querem ver.
Imperturbável, o autor avança, entretanto, com uma nova pedrada no charco: o levantamento da gigantesca solidão que, impressentida, contamina, epidemia, adoece, «suicida» os desprotegidos de nós – por nós.

DACOSTA, Fernando, "Desfuturizar o futuro", Visão, nº 542, 24 de Julho de 2003