A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, dezembro 18, 2004

Maus Costumes

São cada vez mais os países que se estão a fartar de fazer o papel de bobo nesta grande farsa universal

Um pequeno gesto de dignidade nacional provocou um imenso escândalo no início deste ano. Em todo o mundo a imprensa dedicou-lhe títulos de primeira página, como se estivesse a dar conta de algo raríssimo, como: "Homem mordeu cão".
O que aconteceu? O Brasil estava a exigir aos visitantes americanos o mesmo que os Estados Unidos exigem aos visitantes brasileiros: um visto no passaporte e registo na fronteira, incluindo fotografia e impressão digital.
Muitos condenaram este acto de normalidade como uma expressão de perigosa loucura. Quiçá, o mundo não estivesse tão mal acostumado, e as coisas teriam sido vistas de outro modo. Ao fim e ao cabo, o anormal não era que o presidente Lula actuasse assim, senão que fosse o único: o anormal era que os demais aceitassem sem protestar essas condições que Bush impôs a todos os países, com a excepção de uns poucos privilegiados que estão além de qualquer suspeita de terrorismo e maldade.
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Tudo se explicava, obviamente, por causa do 11 de Setembro. Esta tragédia, que o presidente Bush continua a utilizar como um argumento de perpétua impunidade, obriga o seu país a defender-se sem nunca baixar a guarda.
No entanto, como qualquer um sabe, nenhum brasileiro teve nada a ver nada a ver com a queda das Torres Gémeas de Nova York. Pelo contrário, como poucos recordam, o mais grave atentado terrorista de toda a história do Brasil, o golpe de Estado de 1964, contou com a fundamental participação política, económica, militar e jornalística dos Estados Unidos.
Este assunto dos registos dos turistas, que tanta confusão provocou, não é mais do que um caso de justiça retributiva, e seria ridículo confundi-lo com uma tardia vingança histórica. Mas as rotinas da indignidade têm muito mais a ver, na América Latina, com o mau costume da amnésia, de modo que não é de mais recordar que a participação oficial e oficiosa dos Estados Unidos naquele golpe de Estado terrorista foi provada documentavelmente e confessada pelos seus principais actores. E valeria a pena recordar também, que essa revolta não só abriu caminho a uma longa ditadura militar, mas também assassinou e sepultou as reformas sociais que o governo democrático de Jango Goulart estava a levar a cabo para que fosse menos injusto o país más injusto do mundo.
Aquele impulso justiceiro demorou 40 anos a ressuscitar. Nesses 40 anos, quantas crianças brasileiras morreram de fome? O terrorismo que mata de fome não é menos abominável que o que mata por bomba.
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Maus costumes: indignidade, amnésia, resignação. Por medo, custa-nos mudá-los; por preguiça mental, custa-nos imaginarmo-nos sem eles.
Afigura-se-nos inconcebível o revés da trama, a contracara de cada cara. Perguntarmo-nos, por exemplo, o que se teria passado se o Iraque tivesse invadido os Estados Unidos, com o pretexto de que estes possuem armas de destruição maciça? E se a embaixada da Venezuela em Washington tivesse apoiado e aplaudido um golpe de Estado contra George W. Bush, como fez a embaixada dos Estados Unidos em Caracas contra Hugo Chávez? E se o governo de Cuba tivesse organizado 637 tentativas de assassinato contra os presidentes dos Estados Unidos, em resposta às 637 vezes em que tentaram matar Fidel Castro?
O que se passaria se os países do sul do mundo se negassem a aceitar uma só das condições impostas pelo Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a não ser que estes organismos começassem a impô-las aos Estados Unidos, que são o maior devedor do planeta? E se o sul aplicasse os subsídios e tarifas que os países ricos aplicam em casa e proíbem fora dela? E se…?
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Maus costumes: o fatalismo. Aceitamos o inaceitável como se fosse parte da ordem natural das coisas e como se não houvesse outra ordem possível. O sol arrefece, a liberdade oprime, a integração desintegra: gostemos ou não, não há maneira de evitá-lo. Eleja entre isto e isto. Assim se vende, por exemplo o ALCA.
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Lá, no principio dos tempos, o velho Zeus, o mandão chefe, não se enganou. Entre todos os moradores do Olimpo grego, Hermes era o mais mentiroso, o vigarista que todos enganava, o ladrão que tudo roubava. Zeus, ofereceu-lhe umas sandálias com asitas de ouro e nomeou-o deus do comércio. Foi Hermes, mais tarde chamado Mercúrio, quem engendrou a Organização Mundial de Comércio, o NAFTA, o ALCA e outras criaturas concebidas à sua imagem e semelhança.
O NAFTA, o acordo comercial entre Estados Unidos, Canadá e México, acabava de cumprir dez anos. A mão de Hermes, guiou toda a sua infância passo a passo, Vida e obra do NAFTA, primeira década: recordemos não mais do que um par de episódios reveladores daquilo que nos espera caso o ALCA e esta chamada liberdade de comércio, humilhadora de soberanias, se concretizem e se estendam a todo o espaço americano:
* Em 1996, o governo do Canadá proibiu a venda de "uma neurotoxina perigosa para a saúde humana". Era um aditivo para a gasolina, fabricado pela empresa americana Ethyl. Esse aditivo tóxico, proibido nos Estados Unidos, só se vendia no Canadá. A empresa Ethyl, que há muitos anos se dedica à nobre missão de envenenar os países estrangeiros, reagiu processando o Estado Canadiano, porque a proibição do seu produto, liquidava as suas vendas, danificava a sua reputação e significava “uma expropriação”. Os advogados canadianos, advertiram o governo de que estava perdido: não havia nada a fazer. Com o NAFTA, as empresas mandam. Em meados de 1998, o governo canadiano levantou a proibição, pagou uma indemnização de 13 milhões de dólares à empresa Ethyl e pediu-lhe desculpas.
* Em 1995, outra empresa americana, Metalclad, não pode reabrir um depósito de lixo tóxico no estado mexicano de San Luis Potosí. A população impediu-o, de machados na mão, para que a empresa lixeira não continuasse a envenenar a terra e os lençóis subterrâneos de água. A Metalclad processou o governo do México, por “esse acto de expropriação”. Segundo o estabelecido pelo Tratado de Livre Comercio, no ano de 2001 a empresa recebeu uma indemnização de 17 milhões de dólares.
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A Organização das Nações Unidas nasceu no final da Segunda Guerra Mundial. John Fitzgerald Kennedy e Orson Welles estiveram entre os 2.500 jornalistas que publicaram crónicas do grande acontecimento. A Carta fundacional das Nações Unidas estabeleceu "a igualdade de direitos entre as grandes e as pequenas nações".
Era a grande promessa: a partir da igualdade soberana de todos os seus membros, o novo organismo internacional iria mudar o rumo da história da humanidade. Sessenta anos depois, está à vista. Mudou para pior.
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Mas os maus costumes não são um destino, e são cada vez mais os países que se estão a fartar de representar o papel de bobo nesta grande farsa universal.
Há um ano, Thomas Dawson, porta-voz do Fundo Monetário Internacional, comprovava: "Temos muitos alunos destacados na América Latina". Era a linguagem de sempre. Agora, adverte o presidente argentino Néstor Kirchner: "Já não somos tapetes ".É a nova linguagem.
Nova linguagem, nova atitude. Os nossos países dão-se muito mal com os seus povos e pior ainda com os seus vizinhos, e esta é uma longa e triste história de divórcios. Mas as mais recentes reuniões internacionais - em Cancún e Monterrey- foram sacudidas pelo sopro de ventos que o ar agradece. Depois de tantos anos de solidão, nós os fracos, começamos a entender que separados estamos fritos. Já poucos acreditam, como o presidente uruguaio Jorge Batlle, que todavia podemos aspirar a ser mendigos felizes. Até os mais renitentes se estão a convencer de que neste vasto “humilhadeiro”, onde os poderosos praticam impunemente o proteccionismo comercial, a extorsão financeira e a violência militar, a dignidade ou é partilhada ou não é. Devíamos preocuparmo-nos, digo eu, antes que fiquemos iguais a essas fotografias que nos chegam de Marte.

GALEANO,Eduardo,“MalasCostumbres”, www.jornada.unam.mx ,[ 27 de Janeiro de 2004].