A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, setembro 25, 2004

De Hiroxima às Twin Towers

De Hiroxima às Twin Towers


“Visto o número de vítimas civis inocentes mortas no Afeganistão a título “colateral2 pelos bombardeamentos norte americanos, ser agora igual ao número das que morreram no ataque às Twin Towers, talvez nos seja permitido situar os acontecimentos numa perspectiva mais ampla - mais ampla mas não menos trágica - e pôr uma nova questão: matar deliberadamente será fazer um mal mais grave ou mais repreensível do que matar às cegas e sistematicamente? ( Digo sistematicamente porque os Estados Unidos começaram a pôr de pé esta estratégia armada a partir da Guerra do Golfo.)
Não tenho resposta para a questão que formulo. È possível que no terreno, por entre as bombas em cacho lançadas pelos B-52, ou no fumo sufocante de Church Street, em Manhantan, qualquer comparação ética se torne, a este nível, indecente.


No 11 de Setembro de 2001, quando vi na televisão o que os vídeos transmitiam, isso recordou-me imediatamente o 6 de Agosto de 1945. Com efeito, foi nesse dia à noite que nós europeus, soubemos da notícia do bombardeamento de Hiroxima.

Entre estes dois acontecimentos há óbvias correspondências, nomeadamente uma bola de fogo que cai sem avisar de um céu sem nuvens, tendo ambos os ataques sido projectados de modo a ocorrerem à hora em que os civis das cidades escolhidas vão de manhã para o trabalho, em que as lojas abrem, em que as crianças se encontram na escola preparando as lições. Em ambos há uma idêntica redução a cinzas, corpos lançados pelos ares e transformados em destroços. Uma mesma incredulidade e um mesmo caos provocados por uma nova arma de destruição utilizada pela primeira vez – a bomba A há sessenta anos, um avião de passageiros no Outono passado. No epicentro de ambas as ocorrências, sobre todas as coisas e sobre toda a gente, um espesso sudário de pó.

Obviamente, as diferenças de escala e de contexto são enormes. Em Manhantan o pó não era radioactivo. Em 1945, havia então três anos que os Estados Unidos levavam a cabo uma verdadeira guerra contra o Japão. Mas nem por isso deixa de ser verdade que os dois ataques foram concebidos para servir de aviso.


Perante um e o outro, ficou a saber-se que a partir dali o mundo já não era o mesmo mundo: os riscos que por toda a parte são inerentes à vida sofreram uma metamorfose na aurora de um novo dia que amanhecia sem nuvens.


As bombas lançadas sobre Hiroxima e Nagasáqui anunciaram que os Estados Unidos passavam a ser a suprema potência militar do mundo. O ataque do 11 de Setembro anunciou que esta potência já não tem no seu próprio solo uma invulnerabilidade garantida. Estes dois acontecimentos assinalam o início e o fim de um certo período histórico.

Os mais agudos comentários e análises, e também os mais angustiados, da resposta do presidente George W. Bush ao 11 de Setembro – aquilo a que chamou “Guerra contra o Terrorismo”, primeiro crismada “Justiça Infinita” e depois baptizada “Liberdade Imutável” – foram exprimidos e escritos por cidadãos dos Estados Unidos.


A acusação de antiamericanismo feita contra os que se opõem formalmente aos decisores em funções em Washington é de tão curtas vistas como a política que nós pomos em causa. Há incontáveis cidadãos dos Estados Unidos que são antiamericanos e de quem nós somos solidários.

Há também numerosos cidadãos estadunidenses que apoiam a política de Bush, incluindo sessenta intelectuais que recentemente assinaram uma declaração em que procuram definir o que é em geral uma guerra “justa” e por que razão, em particular, se justificam a operação “Liberdade Imutável” no Afeganistão e a guerra contra o terrorismo.


Adiantam estes intelectuais o argumento de que uma guerra é “justa”, ou moralmente justificada, quando o seu objectivo consiste em defender do mal os inocentes. Citam Santo Agostinho. Acrescentando que semelhante guerra, na medida do possível, deverá respeitar a imunidade dos não combatentes.

Se lermos esta declaração com toda a inocência (sabendo, é claro, que ela não foi redigida espontaneamente nem de modo inocente), o texto faz-nos pensar numa reunião de peritos pacientes e eruditos, exprimindo-se com discrição, tendo por sua conta uma vasta biblioteca (talvez até uma piscina entre cada sessão de trabalho) e dispondo do tempo todo para reflectir com calma, para discutir as reservas que uns e outros emitem, chegando por fim a um acordo em que resumem o juízo de todos sobre a questão.


Ressalta também dessa declaração a ideia de uma tal reunião de peritos que terá decorrido algures numa espécie de mítico hotel de Seis Estrelas (com acesso reservado a helicópteros) situado num parque espaçoso mas igualmente cercado de altas muralhas, provido de guardas e com pontos de controlo policiais. Lugar esse onde não pode haver o mínimo contacto entre tais pensadores e a população local, e onde os encontros resultantes do acaso são impossíveis. Resultando pois de semelhantes circunstâncias que aquilo que realmente ocorreu na história e aquilo que hoje se passa para além das paredes do hotel não é tido como um dado legítimo, não sendo, por conseguinte, levado em linha de conta. Trata-se aqui de uma ética para turistas de luxo, protegidos do mundo exterior.

Mas voltemos ao Verão de 1945. Nessa altura haviam já sido destruídas pelo fogo, na sequência de bombardeamentos com napalm, sessenta e seis das maiores cidades japonesas. Em Tóquio um milhão de civis encontrava-se sem tecto e 100 mil pessoas tinham sido mortas. Essas pessoas, para retomarmos a expressão do general-de-divisão Curtis Lemay, responsável dessas operações de bombardeamentos pelo fogo, haviam sido “grelhadas, fervidas e cozidas até à morte”. O filho do presidente Franklin Roosevelt, que era também seu confidente, declarara que os bombardeamentos deviam continuar “até termos destruído mais ou menos metade da população civil japonesa”. A 18 de Julho o imperador do Japão telegrafa ao presidente Truman que entretanto sucedera a Roosevelt, para pedir mais uma vez a paz. A mensagem será ignorada.

Uns dias antes do bombardeamento de Hiroxima, o vice-almirante Radford alardeia a sua bazófia: “O Japão vai acabar por ser uma nação sem cidades – um povo de nómadas”.

A bomba que explodiu por cima de um hospital no centro da cidade matou de uma penada 100 mil pessoas, das quais 95 por cento eram civis. Na sequência da bomba, 100 mil outras irão morrer lentamente dos efeitos da irradiação.

“Há dezasseis horas”, anunciou o presidente Truman, “um avião americano lançou uma bomba sobre Hiroxima, importante base militar japonesa”. Um mês depois, a primeira reportagem não censurada – do corajoso jornalista australiano Wilfred Burchett – descreve os indizíveis sofrimentos que o autor testemunhou ao visitar naquela cidade um hospital improvisado.

O general Groves, então director militar do Projecto Manhanttan, projecto este cuja missão consistia em planificar e produzir a bomba, apressou-se a tranquilizar os membros do Congresso dizendo-lhes que as radiações não provocavam “nenhum sofrimento excessivo” e que “na realidade, segundo nos dizem, constituem uma forma muito agradável de morrer”.


Em 1946, o inquérito sobre os bombardeamentos estratégicos efectuados pelos Estados Unidos conclui que “o Japão ter-se-ia rendido mesmo que as bombas atómicas não tivessem sido lançadas”.

Naturalmente, descrever desta maneira uma tal sequência de acontecimentos é simplificar em exagero. O Projecto Manhanttan foi criado em 1942, na altura em que Hitler triunfava e em que era muito sério o risco de serem investigadores alemães os primeiros a produzir bombas atómicas. Por outro lado, a decisão americana de lançar duas bombas sobre o Japão na altura em que esse risco já não existia tem de ser vista no contexto das atrocidades cometidas pelas forças japonesas através do sudeste asiático e do ataque surpresa a Peal Harbour em Dezembro de 1941. Certos chefes militares americanos e certos cientistas que trabalhavam no Projecto Manhanttan fizeram quanto estava ao seu alcance para dissuadir Truman de tomar uma decisão de tão pesadas consequências ou, pelo menos, para a retardar.

No fim de contas, porém, após tudo ter sido dito e feito, foi impossível celebrar a rendição incondicional do Japão a 14 de Julho – ela aliás não foi sem condições – como uma vitória longamente desejada. No âmago dessa rendição reinavam a angústia e a cegueira.


Esta história tem por fim mostrar a que ponto sessenta pensadores norte-americanos, no seu mítico Hotel de Seis Estrelas, chegam a ser estranhos até à realidade da sua própria história nacional. Tem também por fim lembrar que o período de supremacia militar americana iniciado em 1945 começou, para todos quantos se situam fora da órbita norte-americana, com uma ofuscante demonstração de potência longínqua, impiedosa mas cheia de ignorância. O presidente Bush deveria ter em mente tais factos quando pergunta “Por que razão nos odeiam eles?”. Mas como o poderá fazer? É ele um dos directores do Hotel de Seis Estrelas e nunca de lá sai.”

BERGER, John, “De Hiroxima às Twin Towers”, Le Monde Diplomatique, nº42, 2002

sexta-feira, setembro 24, 2004

Que miséria!

O engenheiro Mira Amaral diz-se cansado das lides político-partidárias e tem toda a razão, coitado, aquilo é coisa de muita canseira, de muito desgaste - e de poucas, oh! tão poucas compensações. Uma pessoa entrega-se de alma e coração, passa uma vida a servir o bem público, deixa para trás carreiras profissionais e projectos de enorme futuro, dá-se, literalmente dá-se, ao país, e no fim o que é que recebe? Nada. Quase nada. Umas palavrinhas de circunstância, um louvor no "Diário da República", pouco mais. Uma pessoa gasta os seus melhores e mais produtivos anos metida em cargos exigidos pela "vida político-partidária" e no fim sai de lá como? Sem nada. Quase com uma mão à frente e outra atrás. É naturalíssimo que uma pessoa se canse...
E o engenheiro Mira Amaral cansou-se. Ao fim de tantos anos de ministro e de gestor público, diz agora que não tem mais disponibilidade para a vida político-partidária. Então ele entregou-se todo ao país e o país só lhe dá uma reformazita de 18.000 euros por mês!... Uma bagatela de 3600 contos por mês, ele que ainda está cheio de força para trabalhar, ele que ainda tanto tem a dar a quem precise dos seus préstimos! Com apenas 58 anos de idade, sentiu-se prematuramente obrigado (cansaço, lá está...) a pedir a reforma e recolhe a casa com uma pensãozita de 3600 contos. Só 3600 contos por mês até ao fim da vida, ele que se devotou à causa pública durante anos e anos, ele que sacrificou uma carreira profissional brilhante à vida político-partidária!
E agora, que vai fazer o engenheiro Mira Amaral, com essa reformazita no bolso como única compensação por tanto sacrifício? Sim, que vai ele fazer? É que a vida está cara, há rendas para pagar, filhos para criar, compras para fazer, comer todos os dias, e roupa, e livros, e carros, e telefone, água, luz, etc., etc., para que é que chegam uns míseros 3600 contos por mês? E depois, com 58 anos, ainda não é um homem inválido, longe disso, ainda pode muito bem trabalhar, mas com essa idade às tantas já não é fácil arranjar emprego, para mais atendendo à sua indisponibilidade para a vida político-partidária, às tantas vai ter que se contentar com um cargozito de "assessor" ou de "consultor" de algum grande banco, vejam lá, "assessor", "consultor", se calhar a ganhar só dois ou três mil contos por mês, ele que foi ministro tantos anos, ele que foi presidente da Caixa durante quase dois anos!, ele que ganhava para aí cinco mil contos, e agora a reforma de três mil e seiscentos, aos 58 anos, e talvez um gabinete de "consultor", aos 58 anos, e talvez uma vida de apertos, aos 58 anos, tudo graças à malfadada vida político-partidária a que com tanta generosidade e desprendimento se entregou durante uma vida.
Razão tem o ministro Bagão Félix: isto é obsceno. País mal agradecido, que não sabe recompensar com justiça os seus mais esforçados e abnegados servidores! E depois ainda nos admiramos que eles se cansem da vida político-partidária... Com estas pensões de miséria, quem é que não se cansaria?...
FIDALGO, Joaquim, "Que miséria", Público, 22 de Setembro de 2004.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Tanto Mar

Luís Nobre Guedes foi no início deste Governo um ministro controverso. Enviaram-no para uma pasta, a do Ambiente, em que não se lhe conhecia a menor preparação: nem duas linhas, nem uma ida a um congresso, nem uma manifestaçãozinha na rua para defender uma espécie em vias de extinção. Veio-se a saber que afinal pertencia a diversas empresas ligadas ao sector na qualidade de advogado. Isso não lhe dá - ao contrário do que pretendiam os zeladores da ortodoxia - a menor competência profissional na área do Ambiente, mas concede alguma oportunidade de ouvir determinadas palavras na matéria.
Teve o azar de lhe cair em cima a questão do incêndio da Galp, elaborando, reconheça-se, com discernimento uma comissão que em pouco dias, e com assinalável limpeza, chegou a conclusões comprometedoras. Mas o modo célere como resolveu o assunto - amplamente elogiado pelo CDS-PP - provocou grande incómodo no Governo, e em particular em Álvaro Barreto. Este declarou que lamentava que Nobre Guedes não tivesse esperado mais três dias.
Como sublinhou Miguel Sousa Tavares, estes três dias são um mistério. Três dias, para quê? Para apagar o fogo? Numa decisão de uma extraordinária imparcialidade, o primeiro-ministro passou o "dossier" para as mãos de Álvaro Barreto, que teve a extraordinária afirmação de que para ele um inquérito nunca está concluído. A afirmação é metafisicamente interessante, mas coloca o problema de sabermos se nesse caso vale a pena criar comissões de inquérito. Luís Nobre Guedes terá perdido em termos de relações de força, mas ganhou em simpatia. Com as anunciadas demolições na Arrábida e na Costa Vicentina (que se prepara para ser devastada pela construção civil), Nobre Guedes tem agora um capital de prestígio.
Mas isto não nos pode fazer esquecer que Nobre Guedes trabalhava para 28 empresas. Era administrador de três, secretário de duas, gerente de três e presidente da mesa da assembleia geral de 20! A gente interroga-se se o país não tem outras pessoas para desempenhar estas funções. Porque o que se prova aqui (e basta vermos o que vem nos jornais todos os dias) é que o mesmo núcleo de pessoas circula de empresa para empresa e de empresa para cargo público e de cargo público para empresa. São sempre os mesmos, uma elite de privilegiados que, ganham, para além das mordomias inerentes, na ordem dos 4000 euros por mês (Nobre Guedes declarou para 2003 a quantia de 457.688 euros).
E quando se está ligado a 28 empresas, será que as conseguimos distinguir? Não corremos o risco de baralhar os nomes, como qualquer Dom Juan de telenovela brasileira? Agora que é ministro, parece que Nobre Guedes ainda arranja uns tempinhos disponíveis para se ocupar apenas de 21 empresas, uma vez que se terá desvinculado de sete. Um pavor. Ainda há quem pense que rico não sofre.
COELHO, Eduardo Prado, "Tanto Mar", Público, 22 de Setembro de 2004

quarta-feira, setembro 22, 2004

O engenheiro Mira Amaral diz-se cansado das lides político-partidárias e tem toda a razão, coitado, aquilo é coisa de muita canseira, de muito desgaste - e de poucas, oh! tão poucas compensações. Uma pessoa entrega-se de alma e coração, passa uma vida a servir o bem público, deixa para trás carreiras profissionais e projectos de enorme futuro, dá-se, literalmente dá-se, ao país, e no fim o que é que recebe? Nada. Quase nada. Umas palavrinhas de circunstância, um louvor no "Diário da República", pouco mais. Uma pessoa gasta os seus melhores e mais produtivos anos metida em cargos exigidos pela "vida político-partidária" e no fim sai de lá como? Sem nada. Quase com uma mão à frente e outra atrás. É naturalíssimo que uma pessoa se canse...
E o engenheiro Mira Amaral cansou-se. Ao fim de tantos anos de ministro e de gestor público, diz agora que não tem mais disponibilidade para a vida político-partidária. Então ele entregou-se todo ao país e o país só lhe dá uma reformazita de 18.000 euros por mês!... Uma bagatela de 3600 contos por mês, ele que ainda está cheio de força para trabalhar, ele que ainda tanto tem a dar a quem precise dos seus préstimos! Com apenas 58 anos de idade, sentiu-se prematuramente obrigado (cansaço, lá está...) a pedir a reforma e recolhe a casa com uma pensãozita de 3600 contos. Só 3600 contos por mês até ao fim da vida, ele que se devotou à causa pública durante anos e anos, ele que sacrificou uma carreira profissional brilhante à vida político-partidária!
E agora, que vai fazer o engenheiro Mira Amaral, com essa reformazita no bolso como única compensação por tanto sacrifício? Sim, que vai ele fazer? É que a vida está cara, há rendas para pagar, filhos para criar, compras para fazer, comer todos os dias, e roupa, e livros, e carros, e telefone, água, luz, etc., etc., para que é que chegam uns míseros 3600 contos por mês? E depois, com 58 anos, ainda não é um homem inválido, longe disso, ainda pode muito bem trabalhar, mas com essa idade às tantas já não é fácil arranjar emprego, para mais atendendo à sua indisponibilidade para a vida político-partidária, às tantas vai ter que se contentar com um cargozito de "assessor" ou de "consultor" de algum grande banco, vejam lá, "assessor", "consultor", se calhar a ganhar só dois ou três mil contos por mês, ele que foi ministro tantos anos, ele que foi presidente da Caixa durante quase dois anos!, ele que ganhava para aí cinco mil contos, e agora a reforma de três mil e seiscentos, aos 58 anos, e talvez um gabinete de "consultor", aos 58 anos, e talvez uma vida de apertos, aos 58 anos, tudo graças à malfadada vida político-partidária a que com tanta generosidade e desprendimento se entregou durante uma vida.
Razão tem o ministro Bagão Félix: isto é obsceno. País mal agradecido, que não sabe recompensar com justiça os seus mais esforçados e abnegados servidores! E depois ainda nos admiramos que eles se cansem da vida político-partidária... Com estas pensões de miséria, quem é que não se cansaria?...
FIDALGO, Joaquim, "Que Miséria", Público,22 de Setembro de 2004

terça-feira, setembro 14, 2004

Portugal: o paradigma da justiça social

Mais do mesmo...
Na passada quinta-feira, 9 de setembro de 2004, surge-nos, nas páginas interiores (como convém!) de um jornal de referência nacional, neste caso o Público a seguinte notícia:"
Modelo Continente Triplicou Lucros "(...)O lucro da Modelo Continente triplicou no primeiro semestre do ano, face a período homólogo do ano anterior, fixando-se em 32 milhões de euros, anunciou ontem a empresa.(...)No mesmo suplemento de economia, aparece também a interessante notícia:"O número de desempregados inscritos nos centros do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) aumentou 6,9 por cento em Agosto, face a igual mês de 2003, informou ontem o Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho.(...)Por outro lado, em evolução mensal, face a Julho, o desemprego registado subiu 0,8 por cento, para 449.764 pessoas. (...)Porém, se nos detivermos um pouco mais no dito suplemento poderemos ainda constatar a profunda preocupação demonstrada pelo ILEGÍTIMO( do ponto de vista das urnas e da dita soberania popular) primeiro ministro de Portugal- Pedro Santana Lopes, no que respeita ao aumento de ordenados dos trabalhadores, quando afirmou que: "as debilidades orçamentais não nos permitem prever grandes crescimentos reais nos salários".Segundo o autor da peça jornalística, não se ficou por aqui: "E voltou a criticar a proposta de base de um aumento de 4,2 por cento para a função pública que os sindicatos foram avançando, porque "continuam a faltar" compromissos "para o crescimento da produtividade". "Não podemos distribuir o que não existe, temos de criar mais riqueza", afirmou Santana Lopes. "Pois, pois...Está-se mesmo a ver para quem é que vai a riqueza, não é?
Belmiro de Azevedo & companhia, devem andar contentes.Os outros... AGUENTEM-se!!! Santa Hipocrisia!!!

domingo, setembro 12, 2004

Os Direitos dos trabalhadores: um tema para arqueólogos?

Mais de noventa milhões de clientes vão semanalmente às lojas da Wal-Mart. Os seus mais de novecentos empregados são proibidos de filiar-se em qualquer sindicato. Quando algum deles pensa em sindicalizar-se, passa a ser um desempregado a mais. A bem-sucedida empresa nega sem dissimulação um dos direitos humanos proclamados pela Organização das Nações Unidas: a liberdade de associação. Sam Walton, o fundador da Wal-Mart, recebeu em 1992 a Medalha da Liberdade, uma das mais altas condecorações dos Estados Unidos.Um em cada quatro adultos norte-americanos, e nove em cada dez crianças, engolem no McDonald’s a comida de plástico que os engorda e torna obesos. Os trabalhadores da McDonald’s são tão desprezados como a comida que servem: cortados pela mesma máquina, eles também não têm direito de sindicalização.Na Malásia, onde os sindicatos operários ainda existem e actuam, as empresas Intel, Motorola, Texas Instruments e Hewlett Packard conseguiram evitar essa doença. O governo da Malásia declarou "união livre", livre de sindicatos o sector electrónico.Também não tinham nenhuma possibilidade de sindicalizar-se as mais de cento e noventa operárias que morreram queimadas na Tailândia, em 1993, no barracão trancado por fora onde fabricavam os bonecos da Rua Sésamo, Bart Simpson e os Muppets.George Bush Jr. e Al Gore coincidiram, durante a campanha eleitoral do ano passado, na necessidade de seguir impondo ao mundo o modelo norte-americano de relações trabalhistas. "Nosso estilo de trabalho", como ambos o chamaram, é o que está marcando os passos da globalização que avança com botas de sete léguas e penetra até nas mais remotas terras do planeta.A tecnologia que aboliu distâncias, agora permite que um operário da Nike na Indonésia tenha que trabalhar 100 mil anos para ganhar o que ganha, num ano, um executivo da Nike nos Estados Unidos, e que um operário da IBM nas Filipinas fabrique computadores que ele jamais poderá comprar.É a continuação da época colonial, numa escala jamais conhecida. Os pobres do mundo seguem cumprindo as suas funções tradicionais: proporcionam braços baratos e produtos baratos, ainda que actualmente fabriquem bonecos, ténis, computadores ou instrumentos de alta tecnologia, além de produzir, como antes, arroz, café, açúcar e outras coisas malditas para o mercado mundial.Desde 1919 foram assinados 183 acordos internacionais que regulam as relações de trabalho em todo o mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), desses 183 acordos, a França ratificou 115, a Noruega 106, a Alemanha 76 e os Estados Unidos...catorze. O país que encabeça o processo de globalização só obedece às suas próprias ordens. Dessa forma, garante suficiente impunidade para as suas grandes corporações lançadas à caça de mão-de-obra barata e à conquista de territórios que as indústrias sujas podem contaminar a seu bel-prazer. Paradoxalmente, esse país que não reconhece outra lei além da lei do trabalho fora da lei, é o que agora diz que não haverá outra saída senão incluir "cláusulas sociais" e de "protecção ambiental" nos acordos de livre comércio. O que seria da realidade sem a publicidade que a mascára?Essas cláusulas são meros impostos que o vício paga à virtude com o rótulo de relações públicas. Mas a simples menção dos direitos dos trabalhadores arrepiam os cabelos dos mais fervorosos advogados do salário de fome, da carga horária esticada ao máximo e da demissão livre. Desde que Ernesto Zedillo deixou a presidência do México, ele passou a integrar as direções da Union Pacific Corporation e do consórcio Procter & Gamble, que opera em 140 países. Além disso, Zedillo chefia uma comissão das Nações Unidas e difunde os seus pensamentos através da revista Forbes. Em idioma tecnocrático, indigna-se contra a "imposição de acordos colectivos de trabalho nos novos acordos comerciais". Traduzindo: vamos deitar ao lixo toda a legislação internacional que ainda protege os trabalhadores. O presidente aposentado cobra para pregar a escravidão. Porém, o principal executivo da General Motors diz mais claramente: "Para competir é necessário espremer os limões". Os factos são factos.Diante as denúncias e os protestos, as empresas lavam as mãos: eu não fui. Na indústria pós-moderna, o trabalho já não está concentrado. Os subcontratados fazem 75% das partes dos automóveis da Toyota. De cada cinco operários da Volkswagen no Brasil, só um é empregado da empresa. Dos 81 operários da Petrobras mortos em acidentes de trabalho nos últimos três anos, 66 estavam ao serviço de empresas subcontratadas que não cumprem normas de segurança. Através de 300 empresas subcontratadas a China produz metade de todas as bonecas Barbie para as meninas do mundo. Na China, sim, há sindicatos, mas eles obedecem a um Estado que em nome do socialismo se ocupa da disciplina da mão-de-obra. "Nós combatemos a agitação operária e a instabilidade social para assegurar um clima favorável aos investidores", explicou recentemente Bo Xilai, secretário-geral do Partido Comunista.O poder económico está mais monopolizado do que nunca, mas os países e as pessoas competem no que podem: vamos ver quem oferece mais em troca de menos; vamos ver quem trabalha o dobro em troca de metade. À beira do caminho estão a ficar os restos das conquistas arrancadas por dois séculos de lutas operárias em todo o mundo.As plantas «maquilhadoras» do México, América Central e Caribe, que por algum motivo se chamam "sweat shops", crescem a um ritmo muito mais acelerado que a indústria no seu conjunto. Oito em cada dez novos empregos na Argentina estão sem nenhuma protecção legal. Nove em cada dez novos empregos na América Latina correspondem ao "sector informal", um eufemismo para dizer que os trabalhadores estão na mão de Deus. A estabilidade no emprego e os demais direitos dos trabalhadores serão, em breve, um tema para arqueólogos? Nada mais que recordações de uma espécie extinta?No mundo ao avesso, a liberdade oprime: a liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos no cárcere do medo, que é a maior prisão de todas as prisões. O deus-mercado ameaça e castiga, como já sabe qualquer trabalhador, em qualquer lugar. O medo do desemprego que serve para que os patrões reduzam os custos de mão-de-obra e multipliquem a produtividade é hoje em dia a fonte de angústia mais universal. Quem está livre do pânico de ser incluído nas longas filas dos que procuram trabalho? Quem não teme converter-se num "obstáculo interno", para dizer segundo as palavras do presidente da Coca-Cola que, há um ano e meio, explicou a demissão de milhares de trabalhadores dizendo "eliminamos os obstáculos internos"?A última pergunta: diante da globalização do dinheiro, que divide o mundo entre domadores e domados, será possível internacionalizar a luta pela dignidade do trabalho? Pequeno desafio.

GALEANO, Eduardo, Os direitos dos trabalhadores:um tema para arqueólogos?, La Jornada

domingo, setembro 05, 2004

O Imperialismo cultural no finado século XX

INTRODUÇÃO

O imperialismo cultural americano tem dois grandes objectivos, um económico e o outro político: capturar mercados para as suas mercadorias culturais e estabelecer hegemonia pela modelação da consciência popular. A exportação do entretenimento é uma das mais importantes fontes de acumulação de capital e de lucros globais, deslocando as exportações manufactureiras. Na esfera política, o imperialismo cultural desempenha uma grande papel na dissociação das pessoas das suas raízes culturais e tradições de solidariedade, substituindo-as com necessidades criadas pelos media, as quais mudam a cada campanha publicitária. O efeito político é alienar pessoas dos vínculos tradicionais de classe e de comunidade, atomizando e separando os indivíduos um do outro. O imperialismo cultural enfatiza a segmentação da classe trabalhadora: os trabalhadores estáveis são estimulados a dissociarem-se dos trabalhadores temporários, o quais por sua vez separam-se dos desempregados, os quais são mais uma vez segmentados entre eles próprios dentro da 'economia subterrânea'. O imperialismo cultural estimula o povo trabalhador a pensar de si próprio como parte de uma hierarquia, enfatizando diminutas diferenças de estilo de vida, de raça e de género com as que estão abaixo deles, ao invés de estimular as enormes desigualdades que as separam daqueles que estão acima delas. O alvo principal do imperialismo cultural é a exploração política e económica da juventude. O entretenimento imperial e a publicidade alvejam pessoas jovens, que são mais vulneráveis à propaganda comercial americana. A mensagem é simples e directa: 'modernidade' é associada com o consumir de produtos dos media americanos. A juventude representa um grande mercado para a exportação cultural americana e são eles os mais susceptíveis à propaganda consumista-individualista. Os mass media manipulam a rebeldia adolescente pela apropriação da linguagem da esquerda e a canalização do descontentamento para extravagâncias culturais. O imperialismo cultural enfoca a juventude não só como um mercado mas também por razões políticas: para cortar pela base uma ameaça política em que a rebelião pessoal poderia tornar-se revolta política contra formas de controle económico e cultural. Ao longo da última década os movimentos progressistas confrontaram um paradoxo: enquanto a grande maioria do povo no Terceiro Mundo experimenta padrões de vida em deterioração, crescente insegurança social e pessoal e decadência dos serviços público (enquanto as minorias abastadas prosperaram como nunca antes) a resposta subjectiva a estas condições tem sido revoltas esporádicas, sustentadas, excepto actividades locais e protestos em grande de curta duração. Numa palavra, há um fosso profundo entre as crescentes desigualdades e as condições sócio-económicas por um lado e a fraqueza das respostas revolucionárias ou radicais subjectivas. A maturação das 'condições objectivas' no Terceiro Mundo não tem sido acompanhada pelo crescimento das forças subjectivas capazes de transformar o Estado ou a sociedade. É claro que não há relacionamento automático entre regressão sócio-económica e transformação sócio-política. A intervenção cultural (no mais vasto sentido da expressão, incluindo ideologia, consciência, acção social) é a ligação crucial que converte condições objectivos em intervenção política consciente. Paradoxalmente, os elaboradores políticos imperiais parecem ter entendido a importância das dimensões culturais da prática política muito melhor do que os seus adversários.

DOMINAÇÃO CULTURAL E EXPLORAÇÃO GLOBAL

O imperialismo não pode ser entendido meramente como um sistema económico-militar de controle e exploração. A dominação cultural é uma dimensão integrante de qualquer sistema sustentável de exploração global. Em relação ao Terceiro Mundo, o imperialismo cultural pode ser definido como a penetração sistemática e a dominação da vida cultural das classes populares pela classe dirigente do Ocidente a fim de reordenar os valores, o comportamento, as instituições e a identidade dos povos oprimidos para que se conformem aos interesses das classes imperiais. O imperialismo cultural tem assumido tanto formas 'tradicionais' como modernas. Nos séculos passados, a Igreja, o sistema educacional e as autoridades públicas desempenharam um grande papel ao inculcar os povos nativos com ideias de submissão e lealdade em nome de princípios divinos ou absolutistas. Se bem que estes mecanismos 'tradicionais' de imperialismo cultura ainda operem, novas instrumentalidades modernas enraizadas em instituições contemporâneas tornaram-se cada vez mais centrais para a dominação imperial. Os mass media, a propaganda, a publicidade, os humoristas e os intelectuais desempenham um grande papel hoje. No mundo contemporâneo, Hollywood, CNN e Disneylandia são mais influentes do que o Vaticano, a Bíblia ou a retórica de relações públicas das figuras políticas. A penetração cultura está estreitamente ligada à dominação político-militar e à exploração económica. As intervenções militares americanas em apoio dos regimes genocidas na América Central, que protege os seus interesses económicos, são acompanhadas por intensa penetração cultural. Evangélicos americanos financiados invadem aldeias indianas para inculcarem mensagens de submissão entre as vítimas do campesinato indiano. Conferências internacionais são patrocinadas por intelectuais domesticados a fim de discutir 'democracia e mercado'. Programas escapistas de televisão semeiam ilusões de 'um outro mundo'. A penetração cultural é a extensão da guerra de contra-insurgência por meios não-militares.

NOVOS DISPOSITIVOS DE COLONIALISMO CULTURAL

O colonialismo cultural contemporâneo (CCC) é diferente das práticas do passado em vários sentidos: 1) Está orientado para a captura de audiências de massa, não apenas para converter elites. 2) Os mass media, particularmente a televisão, invadem os lares funcionam a partir de 'dentro' e de 'baixo' bem como de 'fora' e de 'cima'. 3) O CCC é de âmbito global e homogeneizador no seu impacto: a pretensão de universalismo serve para mistificar os símbolos, os objectivos e os interesses da potência imperial. 4) Os mass media como instrumentos do imperialismo cultural hoje são 'privados' apenas num sentido formal: a ausência de ligações formais com o Estado proporciona uma cobertura legítimas para os media privados projectarem os interesses do Estado imperial como 'notícias' ou 'entretenimento'. 5) Sob o imperialismo contemporâneo, os interesses políticos são projectados através de assuntos não-imperiais: foco de reportagens com notícias de biografias pessoais de camponeses-soldados mercenários na América Central e sorridentes trabalhadores negros americanos na Guerra do Golfo. 6) Devido ao fosso crescente entre a promessa de paz e prosperidade sob o capital desregulamentado e a realidade do aumento da miséria e da violência, os mass media estreitaram ainda mais as possibilidade de perspectivas alternativas nos seus programas. O controle cultura total é a contrapartida da separação total entre a brutalidade do capitalismo realmente existente e as promessas ilusórias do mercado livre. 7) Para paralisar respostas colectivas, o colonialismo cultural procura destruir identidades nacionais ou esvaziá-las de conteúdo sócio-económico substantivo. Para romper a solidariedade de comunidades, o imperialismo cultural promove o culto da 'modernidade' como conformidade com símbolos externos. Em nome da 'individualidade', laços sociais são atacados e personalidades são remoldadas em conformidade com os ditados das mensagens dos media. Enquanto as armas imperiais desarticulam a sociedade civil, e os bancos pilham a economia, os media imperiais suprem os indivíduos com identidades escapistas. O imperialismo cultura fornece devastadoras caricaturas demonológicas dos seus adversários revolucionários, ao mesmo tempo que estimulam a amnésia colectiva da violência maciça dos países pró-ocidentais. Os mass media ocidentais nunca relembram a sua audiência do assassínio pelos regimes anti-comunistas pró-EUA de 100 mil índios na Guatemala, de 75 mil trabalhadores em El Salvador, das 50 mil vítimas na Nicarágua. Os mass media encobrem os grandes desastres resultantes da introdução do mercado na Europa do Leste na ex-URSS, que deixaram centenas de milhões de pessoas empobrecidas.

MASS MEDIA: PROPAGANDA E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Os mass media são uma das principais fontes de riqueza e poder para o capital americanos à medida que estende as suas redes de comunicações através do mundo. Uma porcentagem crescente dos norte-americanos mais ricos extraem a sua riqueza dos mass media. Dentre os 400 americanos mais ricos a porcentagem que deriva a sua riqueza dos mass media aumentou de 9,5 por cento em 1982 para 18 por cento em 1989. Hoje, quase um em cada cinco entre os norte-americanos mais ricos obtêm a sua riqueza dos mass media. O capitalismo cultural deslocou o manufactureiro como fonte de riqueza e influência nos EUA. Os mass media tornaram-se uma parte integral do sistema de controle político e social global americano, bem como uma grande fonte de super-lucros. À medida que os níveis de exploração, desigualdade e pobreza aumentam no Terceiro Mundo, as comunicações de massa controladas pelo ocidente operam no sentido de converter um público crítico numa massa passiva. As celebridades dos medias e do entretenimento em massa ocidentais tornaram-se ingredientes importantes no desvio da potencial inquietação política. A presidência Reagan destacou a centralidade da manipulação dos media através de altamente visíveis mas politicamente reaccionários apresentadores (entertainers) , um fenómeno que se espalhou pela América Latina e na Ásia. Há uma relação directa entre o aumento do número de receptores de televisão na América Latina, o declínio do rendimento e a diminuição da luta de massa. Entre 1980 e 1990 o número de televisores na América Latina por habitante aumentou 40 por cento, enquanto o rendimento médio real diminuiu 40 por cento, e um conjunto de candidatos políticos neoliberais dependentes decisivamente de imagens de televisão ganhou a presidência. O aumento da penetração dos mass media entre os pobres, os crescentes investimentos e lucros das corporações americanas com a venda de mercadorias culturais e a saturação de audiências de massa com mensagens que fornecem aos pobres experiências de segunda mão de consumo individual e aventura define o actual desafio do colonialismo cultural. As mensagens dos media americanos são alienantes para o povo do Terceiro Mundo num duplo sentido. Elas criam ilusões acerca de obrigações 'internacionais' e 'trans-classistas'. Através de imagens de televisão são estabelecidas falsas intimidades e ligações imaginárias entre as pessoas bem sucedidas dos media e os espectadores empobrecidos nos 'barrios'. Esta ligação proporciona um canal através do qual o discurso de soluções individuais para problemas privados é propagado. A mensagem é clara. As vítimas são culpadas pela sua própria pobreza, o êxito depende de esforços individuais. As grandes TV por satélite, as saídas dos mass media americanos e europeus na América Latina, evitam qualquer crítica às origens político-económicas e às consequências do novo imperialismo cultural que temporariamente desorientaram e imobilizaram milhões de empobrecidos latino-americanos.

O IMPERIALISMO E A POLÍTICA DA LINGUAGEM

O imperialismo cultural desenvolveu uma estratégia dual para conter a esquerda e estabelecer hegemonia. Por um lado, procura corromper a linguagem política da esquerda; por outro, actua no sentido de dessensibilizar o público geral para as atrocidades cometidas pelas potências ocidentais. Durante os anos 80 os mass media ocidentais apropriaram-se sistematicamente de ideias básicas da esquerda, esvaziando-as do seu conteúdo original e reenchendo-o com uma mensagem reaccionária. Exemplo: os mass media descreviam os políticos que tentavam restaurar o capitalismo e estimular desigualdades como "reformadores" ou "revolucionários", ao passo que os seus oponentes eram etiquetados como "conservadores". O imperialismo cultural procura promover a confusão ideológica e a desorientação política revertendo o significado da linguagem política. Muitos indivíduos progressistas ficaram desorientados por esta manipulação ideológica. Em consequência, ficaram vulneráveis às afirmações daqueles ideólogos imperiais que argumentam que os termos "direita" e "esquerda" são destituídos de qualquer significado, que as distinções perderam significância, que as ideologias nada mais representam. Pela corrupção da linguagem da esquerda e distorção do conteúdo da esquerda e direita, os imperialistas culturais têm esperança de minar os apelos políticos e práticas políticas dos movimentos anti-imperialistas. A segunda estratégia do imperialismo cultural foi dessensibilizar o público; tornar o assassínio em massa pelos Estados ocidentais coisa rotineira, actividades aceitáveis. Os bombardeamentos em massa no Iraque foram apresentados na forma de vídeo games. Ao trivializar crimes contra a humanidade, o público é dessensibilizado da sua crenças tradicional de que provocar o sofrimento humano é errado. Ao enfatizar a modernidade das novas técnicas de travar a guerra, os mass media glorificam a elite do poder existente — as tecno-guerras do ocidente. O imperialismo cultural hoje inclui relatos de "notícias" em que as armas de destruição em massa são apresentadas com atributos humanos ao passo que as vítimas no Terceiro Mundo são "agressores-terroristas" sem rosto. A manipulação cultural global é sustentada pela corrupção da linguagem política. Na Europa do Leste, especuladores e mafiosos que se apossaram de terra, empresas e riqueza são descritos como "reformadores". Contrabandistas são descritos como "empresários inovadores". No ocidente, a concentração de poder absoluto para contratar e despedir nas mãos da administração e a acrescida vulnerabilidade e insegurança do trabalho é chamada "flexibilidade laboral". No Terceiro Mundo, a venda de empresas públicas nacionais a monopólios multinacionais gigantes é descrita como "ruptura de monopólios". "Reconversão" é o eufemismo para o retorno às condição do século XIX de trabalho despojado de todos os benefícios sociais. "Reestruturação" é o retorno à especialização em matérias-primas ou a transferência de rendimento da produção para a especulação. "Desregulação" é a mudança no poder para regular a economia do Estado Previdência nacional para a banca internacional, a elite do poder multi-nacional. "Ajustamento estrutural" na América Latina significa transferir recursos para investidores e rebaixar pagamento ao trabalho. Os conceitos de esquerda (reforma, reforma agrária, mudanças estruturais) eram originalmente orientados para a distribuição do rendimento. Estes conceitos foram cooptados e tornados símbolos para a reconcentração da riqueza, do rendimento e do poder nas mãos das elites ocidentais. E naturalmente todas as instituições culturais privadas do imperialismo amplificam e propagam esta desinformação orwelliana. O imperialismo cultural contemporâneo degradou a linguagem da libertação, convertendo-as em símbolos da reacção.

TERRORISMO CULTURAL: A TIRANIA DO LIBERALISMO

Assim como o terrorismo de Estado ocidental tenta destruir movimentos sociais, governo revolucionários e desarticular a sociedade civil, o terrorismo económico, tal como praticado pelo FMI e consórcios de bancos privados, destroi indústrias locais, desgasta a propriedade pública e ataca brutalmente famílias assalariadas. O terrorismo cultural é responsável pela deslocação física de locais de actividades culturais e artistas. O terrorismo cultural, aproveitando-se das fraquezas psicológicas e profundas ansiedades das pessoas vulneráveis do Terceiro Mundo, particularmente do seu senso de ser "atrasado", "tradicional" e oprimido, projecta novas imagens de "mobilidade" e "livre expressão", destruindo antigos vínculos com a família e a comunidade, enquanto ata novas cadeias de autoridade arbitrária ligadas ao poder corporativo e a mercados comerciais. Os ataques à moderação e obrigações tradicionais é um mecanismo pelo qual o mercado capitalista e o Estado tornam-se o centro final de poder exclusivo. O imperialismo cultural em nome da "auto expressão" tiraniza as pessoas do Terceiro Mundo temerosas de serem etiquetadas como "tradicionais", seduzindo-as e manipulando-as através de falsas imagens de "modernidade" sem classe. O imperialismo cultura questiona todas as relações preexistentes que são obstáculos a uma e única moderna deidade sagrada: o mercado. Os povos do Terceiro Mundo são entretidos, coagidos, excitados para serem "modernos", para se submeterem às exigências do mercado capitalista, para abandonarem o vestuário confortável tradicional por mal ajustados e inadequados blue jeans apertados. O imperialismo cultura funciona melhor através de intermediários colonizados, colaboradores culturais. O protótipo dos colaboradores culturais são os profissionais em ascensão sociais do Terceiro Mundo que imitam o estilo do seus patrões. Estes colaboradores são servis para com o ocidente a arrogantes para com o seu povo, personalidades autoritárias prototípicas. Apoiados pelos bancos e multinacionais, eles exercem imenso poder através do Estado e do mass media locais. Imitadores do ocidentes, eles são rígidos na sua conformidade com as regras da competição desigual, abrindo o seu país e os seus povos à exploração selvagem em nome do livre comércio. Entre os colaboradores culturais proeminentes destacam-se os intelectuais institucionais que negam a dominação de classe e a guerra de classe imperial por trás do jargão da ciência social objectiva. Eles fetichizam o mercado como o árbitro absoluto do bem e do mal. Por trás da retórica da "cooperação regional", os intelectuais conformistas atacam a classe trabalhadora e as instituições nacionais que constrangem os movimentos do capital — seus apoiantes são isolados e marginalizados. Hoje, por todo o Terceiro Mundo, o ocidente financia intelectuais locais que abraçaram a ideologia da concertação (colaboração de classe). A noção de interdependência substituiu a de imperialismo. E o mercado mundial desregulado é apresentado como a única alternativa para o desenvolvimento. A ironia é que hoje mais do que nunca o "mercado" tem sido menos favorável ao Terceiro Mundo. Nunca os EUA, a Europa e o Japão foram tão agressivos na exploração do Terceiro Mundo. A alienação cultural dos intelectuais institucionais em relação às realidades globais e um subproduto da ascendência do imperialismo cultura ocidental. Para aqueles intelectuais críticos que recusam juntar-se à celebração do mercado, que estão do lado de fora dos circuitos oficiais de conferências, o desafio é mais uma vez retornar à luta de classe e anti-imperialista.

A NORTE-AMERICANIZAÇÃO E O MITO DE UMA CULTURA INTERNACIONAL

Uma das grandes decepções do nosso tempo é a noção de "internacionalização" de ideias, mercados e movimentos. Tornou-se moda evocar termos como "globalização" ou "internacionalização" para justificar ataques a qualquer ou todas as formas de solidariedade, comunidade, e/ou valores sociais. Sob o disfarce de "internacionalismo", a Europa e os EUA tornaram-se exportadores dominantes de formas culturais que na maior parte conduzem à despolitização e trivialização da existência de todos os dias. As imagens de mobilidade individual, a pessoa "self-made", a ênfase sobre a "existência egoísta" (produzida em massa e distribuída pela indústria americana dos mass media) tornaram-se agora instrumentos importantes na dominação do Terceiro Mundo. O neoliberalismo continua a prospera não porque ele resolva problemas, mas porque ele serve aos interesses dos ricos e poderosos e vibra entre alguns sectores dos empobrecidos empregados por conta própria que pululam nas ruas do Terceiro Mundo. A norte-americanização das culturas do Terceiro Mundo tem lugar com a benção e o apoio das classes dominantes nacionais porque ela contribui para estabilizar o seu domínio. As novas normas culturais — o privado sobre o público, o individual sobre o social, o sensacional e violento sobre as lutas quotidianas e as realidades sociais — tudo contribui para inculcar precisamente os valores egocêntricos que minam a acção colectiva. A cultura de imagens, de experiências transitórias, de conquista sexual, trabalha contra a reflexão, compromisso e sentimentos partilhados de afeição e solidariedade. A norte-americanização da cultura significa focar a atenção popular sobre celebridades, personalidades e mexericos privados — não sobre a profundide social, substância económica e condição humana. O imperialismo cultural distrai da relação de poder e desgasta as formas colectivas de acção social. A cultura dos media que glorifica os reflexos 'provisórios' do capitalismo americano sem raízes — seu poder para contratar e despedir, para movimentar o capital sem respeito para com comunidades. O mito da "libertação da mobilidade" reflecte a incapacidade do povo para estabelecer e consolidar raízes comunitárias em face das cambiantes exigências do capital. A cultura norte-americana glorifica o transitório, as relações impessoais como "liberdade" quando de facto estas condições reflectem a anomia e a subordinação burocrática de uma massa de indivíduos ao poder do capital corporativo. A norte-americanização envolve um assalto maciço às tradições de solidariedade em nome da modernidade, ataques às lealdades de classe em nome do individualismo, a degradação da democracia através campanhas maciças dos media que enfocam personalidades. A nova tiraria cultura tem raiz no omnipresente e repetitivo discurso do mercado, da cultura homogeneizada do consumo, de um sistema eleitoral degradado. A nova tiraria dos media mantem-se de pé lado a lado com o Estado hierárquico e as instituições económicas que vão desde os gabinetes dos bancos internacionais às aldeias nos Andes. O segredo do êxito da penetração cultural norte-americana no Terceiro Mundo é sua capacidade para modelar fantasias a fim de escapar à miséria gerado pelo próprio sistema de dominação económica e militar. Os ingredientes essenciais do novo imperialismo cultural são a fusão do comercialismo-sexualidade-conservadorismo, cada um deles apresentado como expressões idealizadas de necessidades privadas, de auto-realização individual. Para algumas pessoas do Terceiro Mundo imersas em tarefas quotidianas sem perspectivas, lutas pela sobrevivência diária, no meio da sujeira e da degradação, as fantasias dos media norte-americanos, tal como o evangelista, retractam "alguma coisa melhor", uma esperança numa melhor vida futura — ou pelo menos o prazer indirecto de observar outros a desfrutá-la.

IMPACTO DO IMPERIALISMO CULTURAL

Se quisermos entender a ausência de transformação revolucionária, apesar da maturação de condições revolucionárias, devemos reconsiderar o profundo impacto psicológico do Estado de violência, terror político e a profunda penetração dos valores cultural/ideológicos propagados pelos países imperiais e internalizados pelos povos oprimidos. O Estado de violência dos anos 70 e princípios de 80 criaram danos psíquicos a longo prazo e em larga escala — medo de iniciativas radicais, desconfiança de colectividades, um sentimento de impotência perante autoridades estabelecidas — mesmo quando as mesmas autoridades são odiadas. O terror virou o povo "para dentro de si próprio", em direcção a domínios privados. Posteriormente, políticas neoliberais, uma forma de "terrorismo económico", resultaram no encerramento de fábricas, na abolição da protecção legal do trabalho, no crescimento do trabalho temporário, na multiplicação de empresas individuais mal pagas. Estas políticas mais uma vez fragmentaram a classe trabalhadora e as comunidades urbanas. Neste contexto de fragmentação, desconfiança e privatização, a mensagem cultural do imperialismo encontrou campos férteis para explorar as sensibilidades de pessoas vulneráveis, encorajando e aprofundando a alienação pessoal, objectivos auto-centrados e a competição individual sobre recursos cada vez mais escassos. O imperialismo cultural e os valores que ele promove tem desempenhado um papel importante para impedir indivíduos explorados de responderem colectivamente às suas condições em deterioração. Os símbolos, imagens e ideologias que se difundiram no Terceiro Mundo são obstáculos maiores para a conversão da exploração de classe e crescente miserabilismo em consciência de classe, base para a acção colectiva. A grande vitória do imperialismo é não apenas os lucros materiais, mas sua conquista do espaço íntimo da consciência dos oprimidos, directamente através dos mass media e indirectamente através da captura (ou rendição) dos seus intelectuais e políticos. Se bem que um renascimento da política revolucionária de massa seja possível, ela deve começar com a guerra não só às condições de exploração como também à cultura que sujeita suas vítimas.

LIMITES DO IMPERIALISMO CULTURAL

Contrariando as pressões do colonialismo cultural está o princípio da realidade: a experiência pessoal de miséria e exploração imposta pelos bancos multinacionais ocidentais, a repressão policial/militar reforçada pelo fornecimento de armas americanas. As realidades diárias, às quais os media escapistas jamais poderão mudar. Dentro da consciência dos povos do Terceiro Mundo há uma luta constante entre o demónio da escapatória individual (cultivada pelos massa media) e o conhecimento intuitivo de que a acção e responsabilidade colectivas são a única resposta prática. Em tempos de mobilizações sociais crescentes, a virtude da solidariedade ganha prioridade; em tempos de derrota e declínio, aos demónios da rapacidade individual é dado livre trânsito. Há limites absolutos na capacidade do imperialismo cultural para distrair e mistificar pessoas para além do qual inicia-se a rejeição popular. A "mesa da fartura" na TV contrasta com a experiência da cozinha vazia, as escapadelas amorosas de personalidades dos media chocam-se contra uma casa cheia de crianças a engatinharem, chorosas e famélicas. Nas confrontações de rua, a Coca Cola torna-se um coquetel Molotov. A promessa de riqueza torna-se uma afronta àqueles a quem é perpetuamente negada. O empobrecimento prolongado e a decadência generalizada corroem o encanto e o apelo das fantasias dos mass media. As falsas promessas do imperialismo cultural tornam-se objecto de anedotas amargas, relegadas para outro tempo e outro lugar. Os apelos do imperialismo cultural são limitados pelos laços duradouros das colectividades — locais e regionais — as quais têm os seus próprios valores e práticas. Onde os laços de classe, de raça, de género e de etnia persistem e as práticas de acção colectiva são fortes, a influência dos mass media é limitada ou rejeitada. Na media em que as culturas e tradições preexistentes se mantenham, elas formam um "círculo fechado" que integra práticas sociais e culturais voltadas para dentro de si mesmas, não para fora. Em muitas comunidades há uma rejeição clara do discurso "modernista" de desenvolvimento individualista associado com a supremacia do mercado. As raízes históricas para a solidariedade sustentada e para os movimentos anti-imperiais são encontradas em comunidades étnicas e ocupacionais coesas; cidades mineiras, aldeias de pescadores e florestais, concentrações industriais em centros urbanos. Onde trabalho, comunidade e classe convergem com tradições culturais e práticas colectivas, o imperialismo cultura recua. A efectividade do imperialismo cultural não depende simplesmente das suas qualificações técnicas de manipulação, mas sim da capacidade do Estado de brutalizar a atomizar a massa do povo, privá-la das suas esperanças e da fé colectiva em sociedades igualitárias. A libertação cultural não significa simplesmente "dar poder" a indivíduos ou classes, mas depende sim do desenvolvimento de uma força sócio-política capaz de confrontar o estado de terror que antecede a conquista cultural. A autonomia cultural depende da força social e a força social é percebida pelas classes dominantes como uma ameaça ao poder económico e do Estado. Assim como a luta cultural está enraizada em valores de autonomia, comunidade e solidariedade que são necessários para criar a condição de consciência por transformações sociais, é necessária a força política e militar para apoiar as bases culturais das identidades de classe e de nação. O mais importante: a esquerda deve recriar uma fé e uma visão de uma nova sociedade construída em torno de valores tanto espirituais como materiais: valores de beleza e não apenas de trabalho. A solidariedade ligada à generosidade e à dignidade. Onde os modos de produção estejam subordinados a esforços para fortalecer e aprofundar antigos vínculos pessoais e de amizade. O socialismo deve reconhecer as aspirações de estar sozinho, de estar na intimidade, assim como de ser social e colectivo. Acima de tudo, a nova visão deve inspirar o povo porque isto vibra com o seu desejo não apenas de ser livre da dominação como de ser livre para criar uma vida pessoal significativa informada por relações afectivas não-instrumentais que tanto transcendam o trabalho quotidiano como inspirem as pessoas a continuarem a lutar. O imperialismo cultural tem êxito quanto à novidade, às relações transitórias e à manipulação pessoal, mas nunca sobre uma visão de laços autênticos, íntimos, baseados sobre a honestidade pessoal, a igualdade de género e a solidariedade social. As imagens pessoais mascaram os assassínios em massa do Estado, assim como a retórica tecnocrática racionaliza as armas de destruição maciça ("bombas inteligentes"). O imperialismo cultural na era da 'democracia' deve falsificar a realidade no país imperial a fim de justificar a agressão — através da conversão das vítimas em agressores e dos agressores em vítimas.

PETRAS, James,"O Imperialismo cultural no finado século XX".

O original encontra-se em http://lists.econ.utah.edu/pipermail/a-list.

Tradução de JF. Este ensaio encontra-se em www.resistir.info