A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

sábado, outubro 23, 2004

A Estratégia da Aranha

O episódio da sesta do primeiro-ministro não é um "fait-divers" ridículo, mas sim um revelador eloquente do estilo de fazer política de Santana Lopes, onde a aparência é tudo e a essência dispensável. Foi assim que ele governou Lisboa, é assim que ele se propõe governar o país. Aparentemente, é apenas ridículo que o gabinete do primeiro-ministro divulgue uma nota oficiosa para desmentir que ele, ao contrário do que noticiou o "Expresso", não fez uma sesta em S. Bento entre o debate parlamentar de quinta-feira passada e a sua presença na Moda Lisboa. Ridículo, porque ninguém, cá fora, pode evidentemente saber se o primeiro-ministro dormiu ou não dormiu uma sesta - o que torna o desmentido totalmente inóquo; ridículo, sobretudo, porque ninguém se interessa com o assunto ou lhe dá o significado e a importância política que o próprio Santana Lopes lhe deu.
E se Santana Lopes deu tanta importância a que o país ficasse a saber que ele não tinha dormido uma sesta é apenas porque não ignora que o país que lê o "Expresso" conhece de há muito a sua fama de trabalhar pouco e preparar mal os assuntos. Sá Carneiro, o primeiro-ministro cuja figura Santana Lopes gosta de invocar a propósito e a despropósito, teve sempre o grande mérito de não ligar à imagem que as pessoas faziam dele, mas sim à avaliação que faziam do seu trabalho: de todos os primeiros-ministros que acompanhei, enquanto jornalista, foi de longe aquele que menos se preocupou em governar com e para os "media" ou para a construção de uma imagem pessoal. O seu autodesignado discípulo é o oposto: a sua obsessão com a imagem e a propaganda está na razão inversa da sua preocupação e da sua competência com a governação. Em Lisboa, deixou a câmara arruinada, sem ter uma única obra que possa dizer sua, mas, em contrapartida, multiplicou por cinco as verbas reservadas a publicidade, gastas em coisas ridículas como aqueles célebres cartazes da série "Já reparou que...?" No Governo do país, prepara-se para avançar com a tal Central de Propaganda, confiada a Morais Sarmento, e cujo custo anunciado é de dois milhões de euros. Entre os assessores de imprensa e de imagem ao serviço da tal central, ao serviço do primeiro-ministro e ao serviço dos vários ministros, é provável que se chegue à centena de pessoas contratadas unicamente para propagandear a acção do Governo - ou seja, para desinformar os cidadãos.
Esta fixação na importância da propaganda e no tratamento da própria imagem - que caracteriza todo o percurso político de Santana Lopes - não implica, necessariamente, que ele seja por igual um inimigo da liberdade de imprensa. Honestamente, não creio que Santana Lopes gostasse de viver num regime como o do seu amigo Jardim, na Madeira, onde as condições de igualdade do debate político e de isenção da imprensa são objectivamente impossíveis. Santana Lopes é, por essência, um orador e um debatente, a quem a ausência de adversário conduz fatalmente à ausência de brilho, por falta de ideias próprias - como bem se viu nos tempos, ainda recentes, em que ele era um comentador solitário da SIC, se sem o tal "contraditório", que agora reclama e que então se esqueceu de reclamar.
Só que uma coisa é estar na oposição, ou mais ou menos na oposição, e outra é estar no poder. E se o poder é perigoso e cega a todos, é especialmente perigoso para pessoas como Santana Lopes, que vivem da construção de uma imagem e de uma ficção. No poder, a sua fatal tendência é deixar de ver a imprensa - que sempre lhe deu asas para voar e para a construção do mito - como o adversário em relação ao qual ele sente a necessidade de ser oposição. Cá fora, a liberdade de imprensa foi-lhe sempre essencial; lá dentro, sente-a como uma ameaça, um adversário a combater. Por necessidade e por vaidade.
Daí até à tentação de acrescentar à propaganda própria o silenciamento das vozes incómodas vai um passo, não tão pequeno quanto ele próprio se dará conta. E vários pequenos passos na direcção do grande passo têm vindo a ser dados por este Governo. São os discursos coincidentes contra os não-alinhados do PSD-Porto, do dr. Jardim e do infeliz e desnudado ministro Rui Gomes da Silva, verdadeira "voz do dono" de todos os tempos e situações; foi o "take-over" sobre a Lusomundo, implicando, de um só golpe, o controlo editorial do "Diário de Notícias", "Jornal de Notícias", "24 Horas", TSF e "Grande Reportagem", entre outros; foi o controlo da Lusa, a única agência de notícias nacional; foi o episódio do afastamento de Marcelo da TVI ("saída", corrigiu a Lusa...); foram as manobras ensaiadas para diversas decapitações de chefias na imprensa, travadas momentaneamente pelo escândalo do caso Marcelo; foram as reveladoras declarações do ministro Morais Sarmento, reclamando o controlo da RTP em nome do "poder que vai a votos".
Tudo coincide e não há que ter ilusões. O processo está em curso, a intimidação e o medo estão instalados e o objectivo claro é garantir a reeleição deste Governo, não pelos seus méritos, mas pela propaganda maciça, e com menos "contraditório" quanto possível dos seus supostos ou reais méritos. É a "italianização" da vida política portuguesa, umas vezes feita subtilmente, outras vezes com a falta de jeito que caracteriza os ministros Gomes da Silva ou Morais Sarmento. A teia vai-se tecendo e não dispensa coisas tão rasteiras como o suborno de jornalistas e de chefias, os "avisos de amigos" ou as soluções finais de silenciamento e afastamento, quando nada mais resulta. Acreditem: sei do que falo, conheço esta gente e os seus métodos, sei o que os move e aquilo de que são capazes.
P.S. - Uma das coisas que caracterizam as pessoas sem coragem é estarem sempre prontas para exigir aos outros o triplo da coragem de que eles não dão mostras. É o caso do lastimável jornalista António Ribeiro Ferreira, do "Diário de Notícias". A propósito da minha situação na TVI (que só a mim me diz respeito), escreveu ele isto: "Miguel Sousa Tavares tem a certeza de que Marcelo Rebelo de Sousa saiu da TVI por pressão do Governo. Mesmo assim continua comentador. Que saudades de Francisco Sousa Tavares." Passo por cima da clássica tentativa de ofensa familiar, bem característica, por exemplo, dos antigos métodos da Pide, apenas dizendo, sobre isso, que conheci bem o meu pai e sei que, perante as pressões políticas, a sua atitude foi sempre, e seria agora, a de resistir e não a de desistir, baixando os braços e entregando a cena aos Ribeiros Ferreira, sempre prontos a servir. Tal como disse na TVI, não tenho dúvidas - e essa foi uma das razões para continuar - de que muitos como ele, e o próprio Governo, adorariam que também eu me calasse. Mas - coisa que não é muito comum nos tempos que correm - toda a redacção da TVI, o seu director-geral e eu próprio denunciámos no ecrã da própria estação o acto objectivo de saneamento político de Marcelo Rebelo de Sousa e a vontade de resistir e de não entregar de mão beijada ao Governo os célebres "conteúdos", que somos nós próprios. Entendi que a minha obrigação era ser solidário com os que fazem a TVI e não a de fazer a vontade aos que a querem controlar de fora. Infelizmente, não vi nenhum jornalista do "Diário de Notícias", e designadamente António Ribeiro Ferreira, ousar sequer um suspiro público de protesto quando o administrador da empresa proprietária do jornal, Henrique Granadeiro, foi convenientemente substituído pelo mais adequado Luís Delgado. É próprio dos que calam e consentem exigir aos outros tudo aquilo de que não são capazes e nunca ficarem satisfeitos. Como se assim pudessem ser desculpados.
TAVARES, Miguel de Sousa, "A Estratégia da Aranha", Público, 22 de Outubro de 2004.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Obsessões Perigosas

Em lugar do "governo do povo, pelo povo, para o povo", os que nos governam só concebem "o governo da televisão, pela televisão, para a televisão"Num dos seus mais brilhantes e memoráveis discursos, Lincoln considerou que a vitória na batalha de Gettisburg na Guerra Civil americana garantia o "renascimento da liberdade; e o governo do povo, pelo povo, para o povo".Século e meio depois, os anões políticos domésticos não só desconhecem o sentido do conceito de liberdade, como apenas concebem "o governo da televisão, pela televisão, para a televisão". Ou para as rádios. Ou para os jornais. O povo deixou de fazer parte das suas preocupações, apenas lhes interesse o que se mostra ou não ao povo. A política deixou de fazer sentido como serviço público, antes como instrumento de estar ou não "por cima" na comunicação social. Por isso perderam o sentido da proporção, levitam num espaço irreal onde, sem referências, se desdobram em declarações que lembram as baratas encadeadas pela luz forte de um mundo e um povo que não desapareceram e que existem para além dos jornais, das rádios e das televisões.Os novos dislates que ontem Rui Gomes da Silva somou à sua colecção particular de atoardas poderiam, e talvez até devessem, ser ignorados como se ignora a indigência vestida de soberba. Poderiam - mas não podem porque mostram onde chegou o desnorte que reina entre os colaboradores mais directos de Pedro Santana Lopes.É certo que a maioria dos políticos olha para a imprensa e os jornalistas apenas como os que trazem e levam recados (e até há quem a isso se preste). Assim como é certo que o amor pela independência de juízo, coerência e sentido crítico dos comentadores varia conforme o "espírito do tempo". Porém, passar daí ao delírio da cabala, como objectivamente passou o ministro, não ofende apenas os que trabalham nesta casa e no "Expresso": mostra que este não compreende os mecanismos da circulação da informação e pensa que pode controlar o pensamento e domar o pluralismo através da mão invisível das dependências ou do tonitroar das ameaças.Tal não surpreende. Afinal, trata-se de alguém que sempre acompanhou Santana e, como ele, acredita que tudo começa e acaba no espaço do pequeno ecrã, com mais ou menos golpes de mágica. De alguém que não entende que o "mel" do "Pedro" termina no momento em que os números de oratória não têm sequência na acção governativa. De quem, como Santana, se atormenta mais com uma notícia, uma fotografia ou um comentário que lhe é desfavorável do que com as difíceis decisões da boa governação.O exemplo acabado de tal obsessão veio-nos este fim-de-semana do mais alto nível, quando o primeiro-ministro mandou a sua chefe de gabinete desmentir uma sua inocente e, porventura, merecida sesta depois de um debate parlamentar. Churchill, que não dispensava o invejável hábito da sesta, teria desprezado a insignificância da picardia; Santana, a quem falta o essencial - a substância -, perdeu a cabeça pois acredita que fica melhor no papel do "homem que não dorme", zelando pelo país de olhos bem abertos (mesmo enquanto assiste a um desfile da Moda Lisboa...).O ridículo mata. Os dislates pagam-se. Os políticos vão e vêm. Mas a obsessão que estes mostram pelo controlo da informação é perigosa. Pior: eles são perigosos.(E, por hoje, já nem nos referimos ao que também ontem disse Morais Sarmento sobre a independência das estações públicas de radiodifusão...)

FERNANDES, José Manuel,´"Obsessões Perigosas", Público,20 de Outubro de 2004.

A cabala involuntária

O caso Rui Gomes da Silva continua a fascinar-nos. Há algo de tão invulgar e surpreendente na personagem que nós não acreditamos que possa ser apenas aquilo que está diante dos nossos olhos. Deverá existir uma armadilha, um alçapão, um truque escondido, que explique aquele comportamento obtuso. Afinal de contas, por muito fortes que sejam os laços de amizade, ninguém chega a ministro com um tal grau de aparente indigência mental. Tem de haver outra coisa.É óbvio que Gomes da Silva executa uma tarefa de assassino profissional por conta do primeiro-ministro Santana Lopes. O primeiro-ministro abre os braços, num gesto de comovida inocência, e declara: "Eu? De modo algum, não é possível, eu até estava a dormir a sesta..." Entretanto, embuçado na sua personalidade se samurai de serviço, Gomes da Silva executa. É aqui que se coloca a pergunta: executa mal para que não se pense que ele acredita no que está a fazer, ou executa mal porque não é capaz de executar melhor? Como justificar uma "performance" tão canhestra?O depoimento prestado à Alta-Autoridade por Gomes da Silva foi de tal modo desastroso que tudo parece levar a pensar que ele só pode fazer de propósito. Ninguém é tonto tantas vezes. Há um Guiness para estas coisas. Gomes da Silva acha que é um político (se a política fosse isto, melhor seria o suicídio) respondendo a outro político. Ninguém explicou a Gomes da Silva que, tendo sido bafejado pela sorte de ser membro do Governo, é como membro do Governo que fala, e deste modo compromete todo o Governo. Dar-se-á conta de que andam membros do Governo encostados às paredes para que não os associem a tais alarvices? Um membro do Governo não pode dizer certas coisas sem que isso tenha consequências que, se ele fosse um mero político, não existiriam. Donde, dizer que não há fundamento que legitime a relação entre o que a infeliz personagem disse e a atitude da TVI é totalmente ridículo: nunca uma pressão foi tão descarada. Não pode ser negada porque milhões de portugueses a viram: sequência é consequência.Que Marcelo dizia "inverdades" (admirável expressão que ainda ninguém distinguiu de "mentiras") e Gomes da Silva explica quais foram: a formação deste Governo foi uma manta de retalhos (até Santana Lopes sabe que foi); "há falta de coordenação" (o que é tão óbvio que levou o primeiro-ministro, num gesto inédito, a dizer que coordenava); que o primeiro-ministro não tem perfil (até Durão Barroso sabe que não); que o Governo foi desastroso no caso da Galp (o que se mete pelos olhos dentro). Se estas são as tais "inverdades", Gomes da Silva está lélé da cuca.Achando que era pouco, Gomes da Silva foi mais longe e conseguiu enriquecer mais uma vez o léxico português. Já se lhe devia o "contraditório", motivo de gáudio em toda a parte. Temos agora essa espantosa aberração semântica que é "uma cabala involuntária". Alguém teve a caridade de explicar a Gomes da Silva o que significa a palavra "cabala"? Não será melhor arranjarem um assessor de português? Mais um, menos um, não é por aí que desequilibramos as contas do Orçamento Geral do Estado.

COELHO, Eduardo Prado,"A Cabala involuntária", Público,21 de Outubro de 2004

quinta-feira, outubro 21, 2004

Central de comunicação

O novo Gabinete de Informação e Comunicação (GIC) que vai ser criado na Presidência do Conselho de Ministros (PCM) custará, em 2005, cerca de dois milhões de euros. A chamada "central de comunicação" já foi aprovada em Conselho de Ministros, mas só começará a funcionar no final deste ano, início de 2005.Este gabinete, que deverá ter entre 20 a 30 pessoas, estava a ser pensado pelo ministro da Presidência, Nuno Morais Sarmento, desde o Governo de Durão Barroso. No entanto, o anterior primeiro-ministro tinha algumas dúvidas sobre a utilidade de uma "central de comunicação" e, por isso, optou por adiar sempre uma decisão.Em pouco tempo, no entanto, Morais Sarmento e o actual primeiro-ministro, Pedro Santana Lopes, conseguiram entender-se. Pelo menos, quanto ao diploma que foi aprovado. A agilidade com que esta questão foi tratada foi vista, no Governo, como uma vontade do primeiro-ministro não querer dar azo a especulações sobre divergências com Sarmento, com quem não tem uma relação de confiança, ao contrário de outros barrosistas. Na Presidência do Conselho de Ministros, é dado como provável o nome de José Augusto Fernandes (ex-jornalista e ex-assessor de Durão em São Bento) para liderar a "central de comunicação", que poderá também recorrer a serviços externos.Segundo o decreto regulamentar que foi aprovado, o GIC irá "elaborar planos de comunicação relativos às políticas públicas aprovadas e à acção governativa; estabelecer as relações com os meios de comunicação social; apoiar assessorias e outras estruturas de imprensa; planear e apoiar campanhas de informação a promover; organizar e apoiar conferências de imprensa dos membros do Governo, bem como sessões de informação e esclarecimento; elaborar conteúdos internos para plataformas de informação e comunicação governamentais; elaborar relatórios de imprensa; promover a formação profissional na área da informação e comunicação e tratar, arquivar e divulgar a informação produzida pelos órgãos de comunicação social".

PEREIRA, Helena,"Central de Comunicação", Público,19 de Outubro de 2004.

Pois é, nem Goebbels faria melhor!
Este vergonhoso governo que nos (des)governa, prentede controlar toda a informação que por aí circula.
Se me é permitido fazer uma sugestão, digo-lhe que o melhor meio para atingir os fins a que se propõe, será talvez acabar de vez com toda a imprensa livre deste ridículo país e estabelecer a pena de morte para os chamados "delitos de opinião". Desta forma, não só poupariam o dinheiro destes desgraçados contribuintes, mas também se livrariam de vez de todas as vozes incómodas e não alinhadas com a sua magna sapiência. MIL VEZES VERGONHA!!!!!! RUA! Já!

quarta-feira, outubro 20, 2004

Sobreviverá o mundo...?

Sobreviverá o mundo...?
"Numa fotografia divulgada há semanas pela Associated Press, vê-se o Presidente Bush cumprimentando Santana Lopes durante uma cerimónia de recepção aos dirigentes mundiais presentes na abertura da 50ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. À direita da fotografia está Santana Lopes apertando a mão ao homem mais poderoso do mundo; ao centro, abraçado a Bush, em atitude de rasteira subserviência, está o Presidente da Guatemala; e à esquerda, está Bush, apertando a mão de Santana e com uma expressão que parece dizer: "Quem é este tipo?" E a legenda reza assim: "O Presidente Bush, com o Presidente da Guatemala, Oscar Berger ao centro, e uma pessoa não identificada à direita, ontem em Nova Iorque..."Embora Santana Lopes não saia bem da fotografia e, particularmente, da legenda, a verdade é que, desta vez, não tem culpa alguma. A expressão na cara de Bush e a legenda da AP são ambas eloquentes demonstrações daquilo que mais assusta a Europa relativamente aos Estados Unidos e a esta Administração: a sua suma ignorância, a sua arrogante e displicente ignorância, sobre o mundo que os rodeia e o qual pretendem comandar e disciplinar de acordo com a sua doutrina universal.Segundo uma curiosa sondagem divulgada há tempos, se o mundo inteiro pudesse votar nestas eleições americanas, Kerry ganharia a Bush com uma esmagadora margem de 80 contra 20 por cento - coisa jamais vista em alguma eleição americana. Os números da sondagem são particularmente impressionantes entre o eleitorado dos países tradicionalmente aliados dos Estados Unidos, como a Inglaterra, a Alemanha, a Itália e até Portugal. A sondagem deveria fazer meditar os americanos nas razões que ocasionam este geral desprezo do mundo pelo seu Presidente. Mas é certo que, se sequer se detiverem a pensar nela, a conclusão será exactamente a oposta: o reforço da popularidade interna de Bush, como desafio ao mundo que o despreza.As razões profundas da popularidade de Bush são, de facto, um fenómeno de difícil explicação, mesmo que parte dela se justifique por um efeito de arrasto de uma vaga actual de conservadorismo na América. Mesmo assim, as razões que muito provavelmente levarão George W. Bush à reeleição em Novembro são de difícil entendimento para um europeu.Bush sucedeu àquele que terá sido, em termos de política doméstica, pelo menos, o melhor Presidente que os americanos tiveram desde o pós-guerra. E desmantelou por completo a herança económica e social de Clinton: transformou o superávit das contas públicas em novo défice galopante, como o haviam feito o seu pai e Reagan, com isso desmentindo a tradicional acusação dos republicanos aos democratas de estes apenas saberem subir impostos e endividar a União. Bush baixou, de facto, os impostos, mas apenas para os ricos e para as grandes empresas, sob o argumento de que isso relançaria o investimento e o emprego - mas em quatro anos perdeu milhões de empregos que os anos Clinton haviam criado. Prosseguindo numa agenda política ditada pelos ícones do neoconservadorismo religioso que o inspiram, Bush desfez o sistema social de saúde montado por Clinton, cortou os subsídios de alimentação às crianças pobres das escolas desfavorecidas, tirou dinheiro à protecção ambiental para o gastar em armamento e, no seu círculo de politólogos iluminados, já se discute até a possibilidade de terminar com o princípio da progressividade fiscal, para o substituir pelo princípio da proporcionalidade (ou seja, a mesma taxa de IRS para quem ganhe mil dólares e para quem ganhe um milhão) - um retrocesso civilizacional de um século.Segundo as explicações mais comuns, a popularidade de Bush sustenta-se, apesar da desastrosa governação, no trauma pós-11 de Setembro e na ideia que o americano comum criou de que Bush é quem está melhor colocado para evitar novo ataque terrorista em território americano. Mas o que é curioso é que essa convicção é alicerçada em puro preconceito ideológico, que os factos não suportam: sabe-se hoje que o Governo de Bush subestimou e negligenciou as informações de segurança que apontavam para a iminência do 11 de Setembro; conhece-se a reacção patética de Bush quando teve conhecimento do ataque a Nova Iorque, documentada no filme de Michael Moore; e permanecem por explicar as cinco horas subsequentes, em que Bush esteve desaparecido, presumindo-se que andou às voltas no céu, a bordo do "Air Force One", até ter a certeza de que o ataque tinha terminado. Perante este panorama, é difícil de entender que garantias pode dar este Presidente de conseguir prevenir novo ataque terrorista ou de saber reagir a ele.Nestes quatro anos de mandato, Bush tem uma única e recente vitória na sua política externa, que foi a realização de eleições no Afeganistão. A passagem da Líbia do campo terrorista para o campo "civilizado", apontado por Rumsfeld como outra vitória desta Administração, deve-se, de facto, aos esforços diplomáticos dos ingleses, e não dos americanos. Quanto ao resto, foi um desastre.A aventura iraquiana foi um total descalabro, cujas consequências vale a pena lembrar:

- Dividiu o campo europeu entre os seguidores acríticos dos Estados Unidos e os outros, quebrando a unidade europeia, a dos Aliados e a da NATO;

- Desautorizou e descredibilizou as Nações Unidas, com consequências que já são visíveis na questão de Darfur, onde a organização revela a impotência a que ficou reduzida, depois de os Estados Unidos a terem remetido a um papel de avalista das decisões de política externa do Departamento de Estado;

- Em nome do desarmamento, invadiu-se um país desarmado - o Iraque - e deixou-se de lado os que verdadeiramente se estavam e estão a armar - a Coreia do Norte e o Irão;
- E, tendo invadido o país errado sob falsos pretextos e falsas provas, perdeu-se o crédito junto da opinião pública para futuras e necessárias missões de segurança internacionais (depois da mentira do Iraque, quem vai acreditar na verdade?);

- Sob o pretexto de combater o terrorismo da Al-Qaeda, que não existia no Iraque, transformou-se o país, mesmo sob a ocupação dos "marines", num campo de recrutamento e actividade florescente de todo o terrorismo, não apenas da Al-Qaeda, mas de várias outras organizações, que entretanto ali nasceram e prosperam, com a justificação da ocupação;

- Não se democratizou o Iraque, porque não havia com quem e porque os iraquianos não aceitaram nova ordem constitucional ditada pelo ocupante;

- Não se trouxe, como prometido, a paz e o progresso ao Iraque, mas sim o terror diário, o caos, o colapso da economia e das instituições civis e a inviabilidade económica e adiministrativa do país;

- Sacrificaram-se mais de mil vidas de soldados americanos, não na conquista do Iraque, mas na sua ocupação, e deitaram-se fora biliões de dólares dos contribuintes americanos e seus aliados, numa solução político-militar de que ninguém adivinha o fim;

- Desviadas as atenções para o Iraque, deixou-se Israel em roda livre, para impor a sua solução para a Palestina, como, quando e até onde quiser;

- E, enfim, dos 28 dólares por barril de petróleo que o mercado pagava antes da invasão do Iraque, saltou-se agora para os 50 dólares por barril - um preço que compromete toda a retoma económica mundial, que estava a iniciar-se quando Bush tomou posse. Pior era impossível.

Bem podem Bush e Rumsfeld gabar-se de que, em contrapartida, Saddam Hussein foi derrubado e está agora numa prisão. Será que essa única boa notícia vale todo o preço já pago e a pagar? Quem pode garantir que não haverá um novo ataque terrorista nos Estados Unidos, ou em Espanha, ou na Inglaterra? Quantos países árabes se sentem tentados a seguir o exemplo do Iraque, democratizado e pacificado, como Bush prometeu?"

TAVARES, Miguel de Sousa,"Sobreviverá o mundo a mais quatro anos de Bush?", Público, 15 de Outubro de 2004.

domingo, outubro 17, 2004

Os métodos e os avisos de Luis Delgado

"Um vendedor de antenas parabólicas, que se acha crítico de televisão, e da Imprensa em geral, passou aos insultos pessoais. Diz tudo do seu carácter e estatura mental. Trate-se, ECT [Eduardo Cintra Torres, cronista do PÚBLICO]. Interne-se, num hospital psiquiátrico."A frase é de Luís Delgado (numa crónica no "Diário Digital"), fiel seguidor de Pedro Santana Lopes, ainda presidente da agência Lusa e já nomeado para presidente executivo da Lusomundo Media ("Diário de Notícias", "Jornal de Notícias", "24 horas", "Tal & Qual", TSF e mais um grupo de jornais da imprensa regional). Eis o que pensa e como age um homem que se afirma jornalista e que há anos tem pena livre em vários órgãos de comunicação social sobre outro homem que faz o mesmo. "Interne-se, num hospital psiquiátrico". Talvez a memória falhe a Delgado, mais coisas deste género faziam-se na ex-URSS.Marcelo Rebelo de Sousa, não foi internado em qualquer hospital psiquiátrico, mas foi silenciado depois de criticado por outro fiel serventuário do poder santanista. Delgado é ainda mais ambicioso.E que não restem dúvidas, Delgado não está só a criticar Eduardo Cintra Torres, está a deixar um claro aviso intimidatório às direcções e chefias dos órgãos de comunicação social a que preside.Aqui, no PÚBLICO, fica Luís Delgado e os que lhe dão ordens desde já a saber que têm azar. Estejam ao serviço de Santana ou de outro qualquer poder.

Alvarez, Luciano, "Os métodos e os avisos de Luis Delgado" Público, 13 de Outubro de 2004

Desfuturizar o futuro

Os jovens estão condenados ao trabalho precário, em condições de exploração e escravização crescentes

Temos de começar a fixar-lhe o nome, pois ele começou a fixar-nos a alma. A alma simboliza, aqui, o carácter, a postura, aquilo que nos engrandece e ensandece.
Trata-se de um jovem sociólogo chamado José Machado Pais que, contornando (daí a eficácia da sua estratégia) o intelectualmente, o cientificamente, o economicamente, o culturalmente, o politicamente correctos realizou um notabilíssimo estudo sobre a situação em que se encontra hoje a parte jovem da população portuguesa. Esse trabalho, a que deu o título (um primor de sarcasmo) de Ganchos, Tachos e Biscates ganhou já o Prémio Gulbenkian de Ciência 2003.
Com serenidade e rigor, o investigador puxou para o lado o véu diáfano da fantasia com que os responsáveis tentam cobrir a nudez fortíssima da realidade que envolve a faixa dos mais novos; e mostrou que os 6,4% de desempregados nela registados (taxa oficial) é um logro, pois o seu valor real situa-se nos 16,5%.
Outro logro é o quantitativo dos que, no grupo em causa, têm trabalho precário (dez vezes mais do que o divulgado), exercido em condições de deterioração, exploração, escravização crescentes.
Enquanto isso, metade dos que cumprem serviços (regulares) no mundo empresarial encontra-se contratada a prazo, ou a recibos verdes, ou sem uma coisa nem outra.
A mentalidade coelheira que enfatiza muitos entre nós – segundo a qual a salvação da Previdência está no incremento dos nascimentos – sofre, assim, um duro golpe: ela, a Previdência (aposentações, assistência, saúde, educação, subsídios) não será, nas actuais circunstâncias, revitalizada com boons de bebés; pelo contrário, as suas despesas ver-se-ão acrescidas pelas carências das novas crianças, primeiro, e dos jovens (em explosão) subempregados e desempregados, depois. Não é, na verdade, com biscates nem afazeres temporários (o estômago não funciona sazonalmente) que se vai a lado nenhum.
O défice da Previdência só se resolve, coisa que os políticos se esquivam a dizer, com trabalho estável, descontos limpos, redistribuição de benefícios, equilíbrio de obrigações.
O aumento da natalidade, e Portugal viu subi-la no ano passado 1,4%, mais 1 631 cidadãos, significa não melhoria das condições futuras de vida (18,8% das nossas crianças vivem abaixo da miséria) mas aumento de mais mão-de-obra barata e submissa, de carne fresca para canhões (voltamos, pela NATO, às guerras) e camas (a prostituição continua a ser uma galinha de ovos de oiro para o turismo).
A taxa de fecundidade nacional situar-se-á em 2050, por exemplo, nos 1,45%, sendo superior à dos italianos, espanhóis e gregos. Entretanto, a população mundial terá, nessa altura, duplicado (9,3 mil milhões de almas) enquanto os produtos agrícolas e a água diminuirão drasticamente, provocando três vezes mais pobres do que hoje.
Ninguém tem, aliás, o direito moral de se assenhorear dos seres humanos, das riquezas colectivas, dos recursos naturais, das matérias-primas. «Se continuar entregue a si mesmo, este sistema conduzir-nos-á à catástrofe», alerta o sociólogo francês Paul Fitoussi. «Os economistas fazem balanços falsos porque escamoteiam os custos económicos e sociais das medidas de austeridade que impõem.»
Sem cantar nem rir, os jovens encontram-se num labirinto no qual, por não lhe acharem a saída, se detiveram, se instalaram, desencadeando, na observação de Machado Pais, a «desfuturização do futuro», o que é gravíssimo para a sobrevivência do País.
À volta, os pais são excedentarizados, as famílias esfrangalhadas, as escolas convertidas em «parques de estacionamento de próximos desempregados».
De cada cinco crianças que nascem hoje, três jamais irão arranjar emprego. O trabalho que, passada a presente crise, se desenvolverá, é o trabalho para os pobres, para os jovens, para os imigrantes, para os de meia-idade e meia indiferenciação, gerando-se situações comparáveis às do século XIX. É a miséria que se mundializa, não é a riqueza.
José Machado Pais revela (antecipa) projecções desse cenário no presente – que os contentinhos do regime, os (bem) instalados nele e beneficiados por ele, no Governo e nas oposições, não querem ver.
Imperturbável, o autor avança, entretanto, com uma nova pedrada no charco: o levantamento da gigantesca solidão que, impressentida, contamina, epidemia, adoece, «suicida» os desprotegidos de nós – por nós.

DACOSTA, Fernando, "Desfuturizar o futuro", Visão, nº 542, 24 de Julho de 2003

sexta-feira, outubro 15, 2004

A brutalidade de um governo perigoso

As declarações do ministro Rui Gomes da Silva (sim, ele é ministro), de quem se conhece uma única qualidade em mais de 20 anos de actividade política - a fidelidade canina a Pedro Santana Lopes -, estão abaixo do zero aceitável em democracia. São a ponta do iceberg de que não veremos o resto: não é conveniente ao sistema e às pessoas envolvidas que se conheçam as pressões exactas sobre a TVI. Mas sabemos que houve pressão política do pior governo de sempre sobre um órgão de informação privado.
Em defesa dos accionistas, a TVI dificilmente faria outra coisa que não falar com Marcelo Rebelo de Sousa. E este não poderia fazer outra coisa senão afastar-se de imediato se quisesse manter a independência. Paes do Amaral não estaria à espera que Rebelo de Sousa reagisse frontalmente, fazendo explodir na praça pública o que tantas vezes políticos, organizações e mesmos jornalistas escondem dos leitores e espectadores, como o director do "Expresso" aceita com aterradora naturalidade (09.10).
Há alguns meses citei aqui um sociólogo de há um século, Ferdinand Tönnies: "A imprensa é livre, mas os jornalistas não". Quatro entidades da SIC - Alcides Vieira, Daniel Cruzeiro, Rita Ferro Rodrigues e Sofia Pinto Coelho - encheram então uma página do PÚBLICO escandalizando-se com a frase de 1922. "SOU LIVRE", escreveu, com maiúsculas, Rita, coitadinha. O caso Rebelo de Sousa comprova a evidência tantas vezes iludida sob as promessas de independência total dos órgãos de informação. A imprensa é livre, a TVI não. O discurso "ao país" de José Eduardo Moniz (TVI, 08.10) prometendo um futuro da informação da TVI igual ao passado foi patético, pois há uma semana estava lá Marcelo, hoje não.
Isto também é válido para os outros órgãos de informação e grupos económicos num país em que o governo é tentacular. Mas há atitudes, ou circunstâncias, que distinguem as pessoas. O proprietário deste jornal, Belmiro de Azevedo, recordou na Gala dos 12 anos da SIC (06.10) a necessidade da independência dos órgãos de informação. A sua intervenção foi importante porque ocorreu no mesmo dia em que rebentou o caso Marcelo e porque ele se dirigia a Francisco Pinto Balsemão que, na primeira fila da plateia, tinha a seu lado o próprio Santana Lopes, saneador de Marcelo.
Foi ele, Santana Lopes, quem, depois de Gomes da Silva, falou não uma mas duas vezes da saída de Rebelo de Sousa da TVI. Santana reiterou palavra por palavra o que antes dissera o seu fiel apaniguado: em resumo, que Marcelo estava a mais na TVI. Trata-se da mais grave intromissão directa e abertamente expressa por um primeiro-ministro de Portugal na liberdade de expressão, a primeira de todas as liberdades cívicas. Eu acho incompreensível que os órgãos de informação e comentadores não tenham sublinhado que Santana Lopes disse exactamente o mesmo que Gomes da Silva. A origem do problema não é Gomes da Silva, é Santana.
Este governo é perigoso. A sua actuação nos "media" é e será de enorme brutalidade. E resulta da orientação de Santana, como o PÚBLICO indicava num relato sobre o Conselho Nacional do PSD de 3 de Setembro (09.10). A criação da "central de comunicação" por iniciativa do chefe do governo revela a prioridade absoluta de intervir sobre os "media".
A forma como o governo impôs desavergonhadamente à maior empresa privada portuguesa, a PT, a nomeação de Luís Delgado para a administração da Lusomundo Media revela que Santana Lopes e o seu exército de "comunicação" não brincam em serviço: querem calar todas as vozes independentes e contrárias ao governo, onde quer que elas estejam.
A entrada de Delgado já motivou duas demissões, a de Henrique Granadeiro, pontapeteado indignamente a dois meses do termo do seu mandato, e a de Silva Peneda, que não foi informado, como obrigavam os estatutos da empresa, da apressada nomeação do factotum comunicacional de Santana.
Tal como Gomes da Silva, Delgado é apaniguado de Santana Lopes há longos anos, desde os tempos em que o próprio Santana tentou criar um grupo editorial para intervir politicamente, com o semanário "Liberal". Delgado não tem escrúpulos - começou a dizer mal do governo Barroso exactamente no momento em que a PT (então dirigida pelo PS) ajudou à fundação do seu "Diário Digital", mas, como Gomes da Silva, conhece-se-lhe apenas a fidelidade a Santana, de quem é conselheiro e público defensor nos seus artigos e intervenções na SICN, na RDP, no "Diário Digital" e no "DN", onde mantém espaços apesar de estar na administração da Lusomundo Media, proprietária do mesmo "DN".
É importante sublinhar que a estratégia de "comunicação" não está isolada do resto da acção do núcleo mais santanista do governo. Ele tentará manter enorme pressão sobre os "media" porque Santana e o seu grupo não querem mais nada da política. Para eles, vencer é manter-se na crista da opinião pública o máximo tempo possível. A governação é irrelevante. Há muita coisa a fazer no governo sem ser governar. Há interesses invisíveis. Daí que seja preciso alimentar os "media" com irrelevâncias, como Santana tem feito desde há 20 anos, e calar as vozes contrárias (o que, agora no governo, se torna vital para não quebrar o feitiço sobre a opinião pública e alguns e algumas jornalistas).
O núcleo do governo será "mole" em todas as áreas, como se viu nos casos da ponte do feriado e da Via do Infante, pois o que quer é manter-se o máximo tempo no activo; esse é o único factor de "unidade" dos membros do governo entre si. O governo só será "duro" numa área, a única que Santana conhece a fundo e que sempre significou o seu ganha-pão político: os "media". Estes são tempos tenebrosos para o país.
E o PS, será alternativa? Cautela também com ele. Armado em cordeiro nesta crise em torno do caso Marcelo, o PS fez avançar como porta-voz no parlamento o mesmo homem que durante anos representou a política comunicacional do guterrismo, também ela tentacular, semelhante à de Santana, talvez um poucochinho menos brutal e certamente menos desajeitada que a de Gomes da Silva e menos obsessiva que a de Santana.
Qual a credibilidade do PS socrático nas suas críticas se mantém a mesma postura e as mesmas pessoas? Não me esqueço que esse Arons de Carvalho enviou ao director do PÚBLICO uma carta na sua qualidade de secretário de Estado pressionando o meu afastamento destas páginas por delito de opinião. A carta foi publicada neste jornal. Gomes da Silva e Arons de Carvalho, a mesma luta. Santana e Sócrates, a mesma luta?
TORRES, Eduardo Cintra,"A brutalidade de um governo perigoso" Público,11 de Outubro de 2004.

sexta-feira, outubro 08, 2004

A Resposta da Fraqueza

Os políticos que estão neste momento no poder no PSD (no PS e no PP) fizeram uma parte muito importante da sua carreira na comunicação social. É normal que assim seja, porque hoje a maioria das carreiras políticas implicam uma relação muito próxima com os "media". Não é uma regra absoluta, mas as excepções apenas a confirmam.
Apesar deste truísmo, a verdade é que as carreiras feitas nos últimos anos em Portugal reflectem, por simbiose, as mesmas características da evolução mediática, as forças e defeitos da comunicação social, do mesmo modo que esta reflecte, muito mais do que se imagina, as fragilidades políticas do país. A carreira comunicacional do primeiro-ministro mostra bem as tendências nos últimos anos: a progressiva espectacularização da comunicação social, com o aparecimento de "reality shows" (participando num concurso televisivo, na Cadeira do Poder), a futebolização da televisão (foi comentador desportivo) e o "boom" da imprensa do coração, onde é notícia habitual e participante activo. Outros aspectos estão também presentes: a assunção pelos políticos do seu papel como "fontes" no jogo da intriga partidária, a utilização a seu favor de falsas colunas de opinião (como era a do "Diário de Notícias") ou de debates promocionais e pouco adversariais (como eram os da RTP).
Não surpreende por isso que, logo desde o início, o primeiro-ministro, coerente com a atenção que sempre tinha dado ao seu próprio "marketing" e publicidade, mostrasse uma verdadeira obsessão com a comunicação social e com a sua imagem. Nos primeiros dias, desdobrou-se em declarações, directos, exclusivos negociados, convencido de que dominava pela palavra a realidade. O resultado acabou por se revelar contraproducente, indiciando a sua pouca preparação para o cargo. Na avalanche de contradições, a que as suas declarações deram origem, entrou em conflito com os ministros que sabiam alguma coisa do que estavam a fazer. Refinaria, taxas moderadoras, deslocalizações de secretarias de Estado, situação do concurso de professores, etc., cada declaração gerava controvérsia, remendos e remendos de remendos. Um bizarro comunicado, a que ninguém deu a atenção que devia, foi emitido pretendendo "explicar" todas estas contradições. Depois surgiram as notícias sobre as contratações de profissionais de imagem e assessores de imprensa, pagos a peso de ouro, assim como o recurso generalizado a firmas de relações públicas. Uma circular vinda do gabinete do primeiro-ministro pedia aos ministros para lhe revelarem a sua "agenda mediática" e quais os contactos que tinham com jornalistas. Tudo convergia para uma célebre "central de informações" que o Governo estaria a preparar.
Se somarmos a tudo isto o controlo da televisão e da rádio públicas, que já vinha do anterior Governo, as mudanças que se estão a dar nas chefias no grupo Lusomundo dependente da PT, colocando todo seu sector mediático sob o controlo de Luís Delgado, um jornalista cuja promoção não tem outra explicação que não seja o seu proselitismo político, usando instrumentos que o PS preparou com o mesmo objectivo de controlo, o panorama é preocupante. Existem ainda suspeitas de pressões políticas e económicas sobre os grupos empresariais de comunicação, para que se "portem bem", escassamente conhecidas fora das administrações do sector e escapando ao escrutínio público.
É verdade que tudo isto tem funcionando muito mal, porque a incompetência instalada é muita, mas temo que a prazo, e com muito dinheiro gasto, possa funcionar bem. Os instrumentos estão lá, as pessoas escolhidas a dedo também. Nessa altura teremos um real problema de pluralidade de expressão, que aliás também se chegou a esboçar no tempo do engenheiro Guterres. Mais uma vez se verifica que o nosso estado tem uma presença excessiva na comunicação social, que tudo está demasiado partidarizado e que quem tem o poder nunca o cede e usa-o. O PS fê-lo, o PSD está agora a fazê-lo.
Sobra o "problema Marcelo". Por razões de mérito próprio e conjunturais, a crise do PS, num período crucial para a "primeira impressão" da imagem governativa e do primeiro-ministro, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido o mais eficaz crítico da governação. A sua voz, vinda de um membro proeminente do partido no poder, de um desejado candidato presidencial, pelo próprio primeiro-ministro, faz estragos consideráveis, quer pela sua capacidade comunicacional, quer pelo conhecimento que tem dos meandros da governação, quer pela comunidade da sua tipologia analítica com a maioria dos portugueses que se interessam por política. A começar pelos jornalistas e pelos militantes partidários, o que garante um eco vastíssimo.
Grande parte do seu sucesso vem desta comunidade entre o seu discurso e o da comunicação social, onde a maioria dos jornalistas aprendeu a fazer um determinado tipo de discurso analítico na escola do "Expresso": cenários, factos políticos, calendário, "saber comunicar" / "não saber", etc. O mesmo tipo de influência estendeu-se aos militantes partidários, que nas suas "análises" imitam o estilo de Marcelo. Qualquer aspirante da JSD ou da JS fala como um pequeno Marcelo, repetindo-lhe os truques e o estilo, ao seu nível de competência. Isto dá-lhe uma influência enorme.
Podem colocar-se muitas reservas ao que Marcelo faz, umas de carácter formal, outras de conteúdo. Mas sejam quais forem as objecções que se possam fazer à elocução de Marcelo, a verdade é que ela resulta de um acordo entre uma estação de televisão privada e um comentador que nunca pretendeu ser isento nas suas opções políticas. O problema do contraditório só tem sentido antes de tudo na televisão pública e depois numa análise mais larga sobre a pluralidade de expressão no conjunto dos "media". O que não pode é servir como contestação ao impacto de Marcelo, que não se deve apenas à extensão do seu tempo de antena solitário. Não há ninguém com 45 minutos de conversa dominical na televisão portuguesa, porque no actual momento não existe ninguém capaz de trazer as audiências que Marcelo dá à TVI. Pode-se dizer que isto nem sempre foi assim e que Marcelo no início era um peso nas audiências do telejornal e só passado muito tempo passou a ser uma vantagem, mas isso só mostra o mérito do próprio e da TVI que investiu num "produto" de qualidade, com o tempo necessário para ele se "fazer".
Tudo isto vem a propósito das declarações insensatas do ministro dos Assuntos Parlamentares que, como é óbvio, falou pelo primeiro-ministro e que apelou à censura de Marcelo. O que é grave nessas declarações é que elas sugerem um delito de opinião e não um abuso de liberdade de imprensa: "Nem o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda juntos conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo como esse comentador [Marcelo Rebelo de Sousa] que, sob a capa de comentário político, transmite sistematicamente um conjunto de mentiras com desfaçatez e sem qualquer vergonha." Quando um membro do Governo apela a que a Alta-Autoridade para a Comunicação Social interfira na liberdade de opinião, tal como é expressa numa televisão privada, está a exigir censura do que lhe é incómodo.
Marcelo é previsível nas suas críticas e nos seus silêncios, nos seus venenos e nos seus ajustes de contas, nas suas verdades e nas suas meia-verdades, só que uma coisa é ter do outro lado alguém convicto do que está a fazer, ou sabendo o que está a fazer, e outra alguém que se desintegra de medo perante o "professor". Esta é que é a questão, e é por isso que calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia. Controlo e censura são respostas da fraqueza.
P.S. - Este texto foi escrito antes de ter sido anunciado que Marcelo Rebelo de Sousa já não fará mais comentários na TVI, na sequência de uma reunião a pedido de Miguel Paes do Amaral, presidente da Media Capital.
PEREIRA, José Pacheco, "A Resposta da Fraqueza", Público, 7 de Outubro de 2004

quinta-feira, outubro 07, 2004

Central de Intoxicação

A inteligência fulgurante do ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, brindou-nos anteontem com um grandioso contributo para o anedotário político da "rentrée". Furibundo, espumando de raiva e vermelho de indignação, atirou-se à suposta parcialidade dos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa, na TVI, que, por razões de "ódio" ao actual primeiro-ministro passa os seus 45 minutos dominicais de opinião política a atacar o Governo. Chega ao ponto de criticar o silêncio da Alta-Autoridade para a Comunicação Social por não exigir o contraditório aos comentários de Marcelo.
As palavras apatetadas deste ministro dariam para rir noutras circunstâncias, e muito. Mas, nos dias que correm, devem ser levadas muito a sério. Este senhor, talvez mais incauto ou tão-só mais arrogante que outros, exemplifica o espírito de intolerância reinante na actual maioria, em particular no PSD, e a noção que os seus actuais dirigentes têm da liberdade de opinião. Nem os próprios militantes do PSD que não sejam suficientemente alinhados com a liderança do partido escapam já à sua fúria censória.
As críticas do tal Gomes da Silva a Marcelo não são isoladas. Há já algum tempo que o Governo desencadeou uma operação de controlo de uma parte do espaço mediático, território decisivo para as batalhas eleitorais que se avizinham, procurando concretizar uma velha estratégia de alguns dos "jovens turcos" que mandam no partido e que vem dos tempos da ascensão de Durão Barroso. Essa estratégia passa por controlar editorialmente um diário nacional de grande expansão, a televisão pública e os restantes órgãos de comunicação estatizados ou que se encontram debaixo do chapéu de chuva da PT Multimédia, para gerir em vantagem o ciclo político que vai até 2006 e em que o PSD quer ter condições para chegar sozinho à maioria absoluta. Como as medidas de Governo podem não chegar, venha a propaganda.
Mais do que a central de comunicação criada ao nível de uma direcção-geral, o que o Governo quer é uma central de intoxicação e está a trabalhar para isso.
Esta operação de controlo editorial da comunicação social estatizada ou sob influência privilegiada do Estado teve uma espécie de tiro de partida com o saneamento político de Henrique Granadeiro, ex-administrador da PT Multimédia e militante do PSD há muitos anos. Bom gestor e conhecedor do negócio específico da comunicação social, Granadeiro nunca foi conhecido em lado nenhum por interferir nos conteúdos editoriais, o que, nas actuais circunstâncias, é um pecado. Por isso foi literalmente "despachado" ante o silêncio geral de todos quantos, partidos de oposição incluídos, parecem não ter entendido o alcance da mudança. Mas as novidades podem não ficar por aqui. Resta saber até que ponto vão resistir ao vendaval as estruturas de chefia de alguns títulos manifestamente não alinhados politicamente (e de outros já alinhados mas não o suficiente...) ou se alguns operadores privados, em particular televisões, não serão empurrados para um comportamento dócil, se quiserem fazer negócios, na televisão por cabo ou na rede de televisão digital terrestre. Fica ainda por saber se esta "berlusconização estatal" vai concretizar-se sem escrutínio público, em particular, da Assembleia da República, e se não entra no cardápio das preocupações do Presidente da República. É que, se nada se passar, então é porque chegámos mesmo à Madeira!
Dâmaso, Eduardo,"Central de Intoxicação",Público, 6 de outubro de 2004