Seis moscas ficam a zumbir na minha cabeça e não me deixam dormir. O mosqueiro das minhas insónias, na verdade é muito mais numeroso - digo seis para encurtar a coisa. Descrevo aqui algumas das angústias que atormentam as minhas noites. Como se verá, não é pouca coisa. Referem-se nada menos que aos destinos do mundo.
Ficará o mundo sem professores?
Segundo o jornal The Times of India, está a funcionar com absoluto sucesso uma Escola do Crime, na cidade de Muzaffarnagar, na região ocidental do Estado indiano de Uttar Pradesh.
Ali oferece-se aos adolescentes uma formação de alto nível para ganhar dinheiro fácil. Um dos três directores, o pedagogo Susheel Mooch, é encarregado do curso mais sofisticado, que, entre outras matérias, inclui Sequestros, Extorsões e Execuções. Os outros dois ocupam-se de matérias mais convencionais. Todos os cursos incluem trabalhos práticos. Por exemplo, a didáctica do roubo em auto-estradas e estradas: escondidos, os estudantes mandam algum objecto metálico sobre o automóvel escolhido; intrigado com o ruído, o motorista pára e então passa-se ao assalto, que o docente supervisiona.
Segundo os directores, a escola surgiu em resposta a uma necessidade de mercado e para cumprir uma função social. O mercado exige níveis cada vez mais altos de especialização na área da delinquência e a educação criminal é a única que assegura aos jovens um trabalho bem remunerado e permanente.
Receio bastante que tenham razão. E apavora-me pensar que o exemplo se vá propagar pela Índia e pelo mundo. Que será – pergunto-me - dos pobres professores das escolas tradicionais, já punidos com salários de fome e com a pouca ou nenhuma atenção que lhes dão os alunos? Quantos professores conseguirão reciclar-se e adaptar-se às exigências da modernidade? Dos que conheço, nenhum. Consta que são incapazes de matar uma mosca e não têm talento sequer para assaltar uma velhinha órfã e paralítica. Que irão ensinar no mundo de amanhã, esse bando de inúteis?
Ficará o mundo sem presidentes?
Consta do diz-que-disse malicioso que um certo presidente de um certo país latino-americano viajou a Washington para negociar a dívida externa. De volta, anunciou ao seu povo uma notícia boa e uma má:
- A notícia boa é que não devemos nem mais um centavo. A má é que todos os habitantes, temos vinte e quatro horas para sair do país.
Os países pertencem aos seus credores. Os devedores devem obediência; o bom comportamento demonstra-se praticando o socialismo, mas o socialismo ao contrário: privatizando os lucros e socializando as perdas.
- Nós fizemos o trabalho de casa - disseram, com poucos meses de diferença, Carlos Menem, ainda presidente da Argentina, e seu colega mexicano Ernesto Zedillo.
Pelo caminho que levamos, dentro em pouco também se vai privatizar o ar, e logo virão os especialistas explicar que quem não paga pelo ar não o sabe valorizar e não o merece respirar. Tudo ou quase tudo se privatizou, digamos assim, na Argentina, no Brasil, no Chile e no México. Nesses quatro países, explicaram que não havia outro remédio para pagar a dívida externa - e os quatro, agora, devem o dobro do que deviam há dez anos.
E essa é outra das fontes de angústia: fico sem sono, pressentindo que um dia destes os banqueiros credores virão desalojar os presidentes e se sentarão nas suas poltronas ao grito de: Basta de intermediários!
E, noite após noite, fico a revirar-me nos lençóis e perguntando-me onde irá parar toda essa gente. Onde conseguirá emprego essa mão-de-obra tão altamente qualificada?
Irão os presidentes aceitar qualquer tipo de biscate? No McDonald's, a fila é grande.
Ficará o mundo sem assunto?
O espectacular desenvolvimento da tecnologia tornou possível que todos nós, habitantes globais deste mundo, tenhamos passado mais de um ano - todo o de 98 e uma parte do de 99 - na expectativa do grande acontecimento do fim de século: as façanhas da linguista Mónica Lewinsky na sala oval da Casa Branca.
A lewinskização globalizada permitiu a todos nós, nos quatro cantos do planeta, ler, ver e ouvir, até o mínimo detalhe, essa epopeia da humanidade. Os grandes meios de comunicação de massa outorgam-nos mil possibilidades de optar entre isto e isto.
Mas isso acabou por passar, como também passaram Grécia e Roma, e a partir daí, a grande imprensa, as redes de televisão e as rádios ficaram sem assunto. Estava eu a alimentar a esperança de que rebentasse outro sexgate quando alguém me contou que, segundo fontes bem informadas, a secretária de Estado Madeleine Albright ia denunciar o presidente por assédio sexual incessante. Mas nunca mais ouvi mencionar o caso e suspeito que se trate de um boato torpe, indigno de ocupar o centro da atenção universal.
E isso também me tira o sono. Agora que os jornalistas passaram a chamar-se comunicadores sociais, que irão eles comunicar à sociedade? De que irão viver? Mais uma multidão de desempregados lançados à rua?
Ficará o mundo sem inimigos?
Já faz bastante tempo que os Estados Unidos e os seus aliados da Nato não fabricam uma guerra. A indústria da morte está a ficar dócil. Os imensos orçamentos militares precisam de justificar a sua razão de ser e a indústria de armas não tem onde exibir os seus novos modelos.
Contra quem será lançada a próxima missão humanitária? Quem será o próximo inimigo? Quem fará o papel de vilão no próximo filme, quem será o Satã do inferno que virá?
Isso deixa-me muito preocupado. Estive a reler os motivos invocados para bombardear o Iraque e a Jugoslávia e cheguei à conclusão alarmante de que há um país, e um só país, que reúne todas as condições, todas, todinhas, para ser reduzido a escombros.
Esse país é o principal factor de instabilidade da democracia em todo o planeta, devido ao seu velho costume de fabricar golpes de Estado e ditaduras militares. Esse país constitui uma ameaça para os seus vizinhos, que invade, com frequência, desde sempre. Esse país produz, armazena e vende a maior quantidade de armas químicas e bacteriológicas. É nesse país que se situa o maior mercado de drogas do mundo e nos seus bancos lavam-se milhões de narcodólares. A história nacional desse país é uma longa guerra de limpeza étnica, contra os índios primeiro, contra os negros depois; e esse país foi, nos anos recentes, o principal responsável pela matança étnica que aniquilou duzentos mil guatemaltecos, na sua maioria índios maias.
Irão os Estados Unidos auto-bombardear-se?
Invadir-se-ão a si próprios? Cometerão os Estados Unidos esse acto de coerência, fazendo consigo o que fazem com os outros?
As lágrimas molham a minha almofada !Queira Deus evitar que se passe semelhante desgraça com essa grande nação, que nunca foi bombardeada por qualquer outra.
Ficará o mundo sem bancos?
Na sua edição de 14 de Dezembro de 1998, a revista Time publicou o relatório do Congresso norte-americanos sobre a evaporação de cem milhões de dólares provenientes do tráfico de drogas, no México. Segundo a comissão parlamentar que investigou o caso, foi o Citibank que organizou a viagem dessa narcofortuna através de cinco países, assim como inventou empresas-fantasmas e nomes fantasiosos até conseguir apagar as pistas.
O sistema prisional norte-americano - com a maior população do planeta - está cheio de jovens pobres e negros, dependentes de droga; mas o Citibank, estrela brilhante do céu financeiro, não foi preso. Na verdade, essa foi uma ideia que não passou pela cabeça de ninguém. E no entanto, a leitura do relatório deixou-me a ruminar. É verdade que esse grande banco continua livre e prosperando; e que o sabão Citibank, o amaciador Banco Suíço, a água sanitária Bahamas, assim como tantas outras marcas prestigiadas pelas melhores lavandarias continuam a bater, alegremente, recordes de venda no mercado global de artigos de limpeza.
Mas não consigo deixar de pensar que a ameaça se acerca deles.
O que aconteceria se um belo dia a guerra contra as drogas deixasse de ser uma guerra contra os drogados, que pune as vítimas, e se as armas corrigissem a pontaria, apontando a mira mais acima?
Agora, que a economia morreu e só existem as finanças, o que seria do mundo sem bancos? E o que seria do pobre dinheiro, condenado a deambular pelas ruas, como fazem as pessoas sem casa onde morar? Só de pensar nisso, sinto um aperto no coração.
Ficará o mundo sem mundo?
Um dia de Outubro de 98, em plena Era Lewinskiana, descobri uma notícia insignificante, perdida no pé-de-página de algum jornal. Três organizações ambientalistas - WWF International, New Economics Foundation e World Conservation Monitoring Centre - haviam chegado à conclusão de que, nos últimos trinta anos, o mundo perdeu cerca de um terço das suas riquezas naturais. A maior catástrofe ecológica desde a época dos dinossauros: a recuperação das plantas e animais extintos levaria pelo menos cinco milhões de anos.
Desde que li essa pequena notícia sem importância, outra obsessão deixa-me sem dormir. Não consigo tirar da cabeça o pressentimento de que, nalgum tempo, em nalgum lugar, animais e plantas nos farão um juízo final. Chego ao delírio de nos imaginar a todos, acusados por fiscais que nos apontarão, com a pata ou o galho:
-O que é que vocês fizeram deste planeta?
Em que supermercado o compraram?
Quem lhes deu o direito de nos maltratar e exterminar?
E vejo uma corte suprema de animais e vegetais lendo a sentença de condenação eterna contra o género humano.
Pagarão os justos pelos pecadores?
Passarei a minha eternidade no inferno, junto a bem-sucedidos empresários exterminadores do planeta, assim como os seus políticos comprados e os seus chefes guerreiros e os seus negociantes publicitários que vendem veneno envolvendo-o com celofane verde?
Um suor gelado faz-me tiritar o corpo. Até agora, achava que o juízo final era caso para Deus. Na pior das hipóteses, eu iria cumprir o meu destino compartilhando o churrasco perpétuo com assassinos de filmes enlatados, cantores de televisão e críticos literários. Agora, com a comparação, isso parece-me uma coisa à toa."