A MORDER OS CALCANHARES DO PODER

quinta-feira, dezembro 30, 2004

War-cost

war-cost

Democracia económica

Este dado é alarmante: 45% dos latino-americanos prefere submeter-se a uma ditadura que lhes garanta emprego e uma renda suficiente, a viver numa democracia que os empurre para a miséria. Este é o resultado da investigação realizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 2002, quando foram entrevistadas 30 mil pessoas em 18 países do continente, eu incluído.
Entre os países investigados, o Brasil conseguiu o primeiro lugar em termos de democracia formal, mas ficou em 15º nos itens de inclusão social, saúde, educação, emprego e cidadania. Os dados da investigação foram objecto de análise da conferência internacional “Democracia, participação cidadã e federalismo” promovida pelas Nações Unidas, realizada em Brasília nos dias 2 e 3 de Dezembro.
Com efeito, para muitos latino-americanos a liberdade não passa de um direito virtual. Em teoria, uma empregada doméstica do Sudeste brasileiro é livre para viajar e visitar a sua família no Nordeste. No entanto, os seus rendimentos são insuficientes. Desta forma, a liberdade que lhe é assegurada pela política, é-lhe simultaneamente negada pela economia.
Muitas pessoas preferem a segurança à liberdade. É o caso de uma boa parte da população dos Estados Unidos, país psicologicamente ocupado com Bin Laden (Nem Sun Tzu, nem Clausewitz previram esta forma de ocupação nos seus tratados sobre a guerra). Isto explica a reeleição de Bush.
O medo suprime a liberdade, pois gera insegurança e exige excesso de protecção. Basta olhar para os condomínios e edifícios habitados pelas famílias de altos rendimentos. São autênticas penitenciárias de luxo, com a diferença de os seus ocupantes possuírem a chave da porta e o direito de entrar e sair.
O capitalismo e o socialismo fracassaram historicamente. O primeiro por ter aprofundado a desigualdade entre os povos, obrigando hoje a que 2/3 da população mundial (cerca de 4 mil milhões de pessoas) tenha que sobreviver abaixo da linha de pobreza. O capitalismo não conseguiu combinar a democracia política com a económica
Muito pior, transformou a política num meio de assegurar a concentração da riqueza em poucas mãos. Este dado diz tudo: quatro cidadãos dos Estados Unidos – Bill Gates, Paul Allen, Larry Ellison e Warren Buffet - possuem juntos uma fortuna superior ao PBI de 42 nações com 600 milhões de habitantes.
O socialismo cometeu o erro contrário, democratizou a economia e privatizou a política, assegurando ao conjunto da sociedade alimentação, saúde, educação, trabalho e cultura, embora excluindo o direito à autodeterminação.
A investigação do PNUD deixa claro que a ditadura económica -este modelo neoliberal que agrava a desigualdade social - é o caldo de cultivo para o advir da ditadura política. Não foi outra a razão do golpe militar de 1964 no Brasil. Temiam as reformas básicas anunciadas pelo governo de João Goulart, reformas pelas quais até hoje a nação aguarda.
Acabo de ler "Francisco de Assís, o santo relutante" de Donald Spoto, excelente biografia que demonstra como até uma comunidade religiosa, integrada por homens dispostos a seguir os passos de Jesús, cede à tentação de se institucionalizar, trocando o evangelho pelo direito canónico e o espírito de serviço pela disputa pelo poder.
Isto é o que acontece com a economia, a mais ideologizada de todas as ciências, a ponto de idolatrar o mercado e colocar os interesses do capital acima dos direitos das pessoas. Ninguém duvida do evangelismo de Francisco, considerado por uma investigação dos media nos Estados Unidos, a figura más eminente dos últimos dois mil anos.
Mas reflectirá hoje a sua obra a Boa Nova trazida por Jesus? Uma boa obra política pode salvar um país da derrocada, mas será capaz de salvar a nação da miséria? A boa saúde das contas públicas reflecte o bem-estar dos cidadãos? Durante a ditadura, um general-presidente admitiu que “a economia vai bem, o povo vai mal”. A investigação do PNUD dá que pensar.
Sobretudo obriga-nos a indagar se a reconquista da democracia na América Latina é um avanço ou uma ilusão. Para ser um avanço necessita ser complementada pela democracia económica, ou seja, o acesso da maioria ao trabalho e aos rendimentos. Se é uma ilusão, em breve o Continente retornará a um ciclo de autoritarismo, como tantos que marcaram o seu passado.
Por que será que os nossos países temem tanto o desenvolvimento sustentável , a soberania nacional e a expansão do mercado interno? O superávit social não deveria ter mais importância do que o fiscal?

BETTO, Frei,"Democracia económica",www.rebelion.org/noticia.php?id=8880.[16 de Dezembro de 2004]

quarta-feira, dezembro 29, 2004

terça-feira, dezembro 28, 2004

Escrito na Água

O que levará o ainda primeiro-ministro a andar 24 horas por dia com uma unidade de cuidados intensivos com ele - o que apenas se poderia justificar em deslocações ao estrangeiro. Ora Santana Lopes, sempre mimado e caprichoso, desde Setembro que se apropriou deste equipamento. Previa um ano difícil? Sentia o chão - isto é, o Governo - a fugir-lhe debaixo dos pés? O mais curioso é lermos as declarações de um dos seus médicos, o conceituado especialista no combate à droga, como devem estar lembrados, Manuel Pinto Coelho, que estão, na equipa do primeiro-ministro, a pensar em comprar um equipamento "mais leve". Percebe-se que este é muito pesado e sobrecarrega os carros dos seguranças (que têm a peculiaridade de aparecerem nas comitivas como "não identificados" - e por que não usar máscaras para não darem nas vistas?). Mas que delírio alucinatório leva a que se pense em comprar outro equipamento "mais leve" - com o nosso dinheiro de contribuintes? Será para aguentar sem desfalecimentos a noite da derrota?
Neste momento o que se verifica, numa patética inversão que explica muita coisa, incluindo o equipamento do INEM, é que Santana Lopes desce vertiginosamente e que Paulo Portas sobe. Paulo Portas tem um ar feliz. Não está amuado, está nas suas sete quintas, comete erros por excesso de demagogia (como a questão com os banqueiros), mas não consegue esconder este permanente enunciado que o atravessa de alto a baixo: "Desta já me safei". É verdade que se safou. Conseguiu demarcar-se da série de dislates com que o Governo se ia demolindo dia após dia. Conseguiu ser um bom ministro da Defesa. E conseguiu dar a imagem de que os ministros CDS eram excelentes e tinham uma ética diferente na política - apesar do desastre de Celeste Cardona, do nascimento ainda imperfeito de Telmo Correia e do final catastrófico de um Bagão Félix que há bem pouco tempo parecia mais rigoroso e seguro de si. Pois apesar de estar na coligação descoligada, Paulo Portas consegue subir levemente nas sondagens, certamente por contraste com Santana Lopes.
Quanto a este, carregando um ar de amuo que o leva a falar do agravo que sofreu em tudo quanto é sítio, incluindo no estrangeiro, e depois de se ter feito constar que teve um daqueles momentos de patriotismo egocêntrico e pensou em abandonar tudo, e deixar o Governo à deriva (talvez funcionasse melhor...), a grande interrogação para mim continua a ser: que levou Durão Barroso, um homem inteligente e com sentido de Estado, a decidir dar a Santana Lopes os destinos do Governo? Que lhe passou pela cabeça? Ninguém o conhecia melhor em termos de saber as suas limitações. Dizem-me dois astrólogos que o problema de Santana é bem simples de explicar: ele tem todos os signos em água, e isso faz que se defina pela inconsistência e que abandone sempre a meio o que estava a fazer, e mude de opinião todos os dias. Sempre foi assim em todo o lado, mas desta vez deu mais nas vistas. Tendo a mobilidade instável e infixável da água, Santana Lopes continua a ser a criança mimada que transforma o lago em pântano. Veio dar involuntariamente razão a Guterres: estamos no pântano, pior do que nunca.
COELHO, Eduardo Prado, "Escrito na Água", Público, 20 de Dezembro de 2004.

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Feliz Natal...

p_24_12_2004

O Teatro do Bem e do Mal

Na luta do Bem contra o Mal, é sempre o povo que apanha as favas. Os terroristas mataram trabalhadores de sessenta países em Nova Iorque e Washington, em nome do Bem contra o Mal. E em nome do Bem contra o Mal, o Presidente George Bush jurou vingança: “Vamos eliminar o Mal deste mundo”, anunciou.
Eliminar o Mal? O que seria do Bem sem o Mal? Não são só os fanáticos religiosos que precisam de inimigos para justificar a sua existência. Os Bons e os maus, os maus e os bons: os actores trocam de máscaras, os heróis tornam-se monstros e os monstros heróis, segundo as exigências daqueles que escrevem o drama..
Não há nada de novo nisto. O cientista alemão Werner Von Braun foi mau quando inventou os foguetes V-2 que Hitler lançou sobre Londres, mas passou a ser um bom no dia em que começou a dirigir o Império do Mal. Nos anos da Guerra Fria, John Steinbeck escreveu: “Pode ser que toda a gente precise de russos. Aposto que até na Rússia eles precisam de russos. Talvez lhes chamem lá americanos”. Depois os russos tornaram-se os bons. Hoje, Vladimir Putine diz também:”O Mal deve ser punido”.
Saddam Hussein era bom, assim como as armas químicas que utilizava contra os iranianos e os curdos. Depois, passou a ser mau. Passou a chamar-se Satã Hussein quando os Estados Unidos, que acabavam de invadir o Panamá, invadiram o Iraque porque o Iraque tinha invadido o Kowait. Bush pai encarregou-se desta guerra contra o Mal. Com o espírito humanitário e pleno de compaixão que caracteriza a sua família, matou mais de cem mil iraquianos, na sua maioria civis.
Satã Hussein continua no seu posto, mas este inimigo número um perdeu o lugar e já só é número dois. A praga do mundo chama-se agora Osama Bin Laden. A CIA ensinou-lhe tudo o que ele sabe em matéria de terrorismo: Bin Laden, amado e armado pelo governo dos Estados Unidos, era um dos principais guerreiros da liberdade contra o comunismo no Afeganistão.
Bush pai ocupava a vice-presidência quando o Presidente Reagan declarou que estes heróis eram “o equivalente moral dos pais fundadores da América”. Hollywood estava de acordo com a Casa Branca. Foi nessa época que se filmou o Rambo 3: os afegãos muçulmanos eram os bons. Hoje são os piores dos maus, no tempo de Bush filho, treze anos mais tarde.
Henry Kissinger foi um dos primeiros a reagir face à recente tragédia. “Tão culpados quanto os terroristas são aqueles que lhes deram apoio, financiamento e inspiração”, foi a sua sentença, retomada pelo Presidente Bush poucas horas mais tarde. Se assim é, devia-se começar por bombardear Kissinger. Ele será culpado de muitos mais crimes do que os cometidos por Bin Laden e por todos os terroristas que existem no mundo. E em muitos mais países: agindo por conta de vários governos americanos, levou “apoio, financiamento e inspiração” ao terrorismo de Estado na Indonésia, no Cambodja, no Chipre, nas filipinas, na África do Sul, no Irão, no Bangladesh, e nos países sul-americanos que sofreram a guerra suja do Plano Condor.
A 11 de Setembro de 1973, vinte e oito anos antes das chamas recentes, ardia o palácio presidencial no Chile. Kissinger tinha antecipado o epitáfio de Salvador Allende e da democracia chilena, comentando os resultados das eleições:”Nós não podemos aceitar que um país se torne marxista por causa da irresponsabilidade do seu povo”.
O desprezo pela vontade do povo é uma das muitas coincidências entre o terrorismo de Estado e o terrorismo privado. Por exemplo, a ETA, que mata em nome da independência do País Basco, diz através de um dos seus porta-vozes:”Os direitos não têm nada a ver com maiorias e minorias”.
Há muitos pontos comuns entre terrorismo artesanal e o terrorismo de alto nível tecnológico, entre o dos fundamentalistas religiosos e os fundamentalistas do mercado, o dos desesperados e o dos poderosos, o dos loucos isolados e o dos profissionais de uniforme. Todos partilham o mesmo desprezo pela vida humana: os assassinos dos cinco mil cidadãos esmagados sob os escombros das Torres Gémeas e os assassinos dos vinte mil guatemaltecos, na maioria indígenas, que foram exterminados sem que jamais a televisão ou os jornais do mundo lhes tenham prestado a mínima atenção.
Esses, os guatemaltecos, não foram sacrificados por nenhum fanático muçulmano, mas pelos militares terroristas que receberam “apoio, financiamento e inspiração” dos governos dos Estados Unidos.
Todos os amantes da morte coincidem também na sua obsessão em reduzir a termos militares as contradições sociais, culturais e nacionais. Em nome do Bem, da Verdade única, todos resolvem tudo matando primeiro e levantando as questões depois. Deste modo, acabam por favorecer o inimigo que combatem.
Foram as atrocidades do Sendero Luminoso que prepararam o terreno do Presidente Fujimori, que, com um considerável apoio popular, implantou um regime de terrror e vendeu o Peru por tuta-e-meia. Foram as atrocidades dos Estados Unidos no Médio Oriente que prepararam o terreno da guerra santa do terrorismo de Alá.
Embora agora o líder da civilização exorte a uma nova cruzada, Alá está inocente dos crimes que se cometem em seu nome.. afinal de contas, Deus não ordenou o holocausto nazi contra os fiéis de Jeová e não foi Jeová quem ditou o massacre de Sabra e Chatila, nem quem mandou expulsar os palestinianos da sua terra.
Uma tragédia de equívocos: já não se sabe quem é quem. O fumo das explosões faz parte de uma cortina de fumo bem mais espessa ainda, que nos impede de ver. De vingança em vingança, os terrorismos obrigam-nos a caminhar titubeando. Olho uma fotografia recente: numa parede de Nova Iorque alguém escreveu: “O olho por olho torna o mundo cego”. A violência gera violência e também a dor, o medo, o ódio e a loucura.
Em Porto Alegre, no início do ano, o argelino Ahmed Bem Bella avisava:”este sistema que já pôs as vacas loucas está a pôr as pessoas loucas”. E os loucos, loucos de ódio, agem da mesma maneira que o poder que os gerou. Luca, de três anos, comentava estes dias:”O mundo já não sabe onde fica a sua casa”. Estava a ver um mapa-múndi. Mas podia estar a ver o telejornal.

GALEANO, Eduardo,”O teatro do Bem e do Mal”, O Império em guerra, Porto, Campo das Letras, 2002.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Human Rights

Human Rights

Resposta de Naomi Klein a David T. Johnson

David T Johnson, Embaixador em exercício, Embaixada dos Estados Unidos Londres
Caro Sr. Johnson, no dia 26 de Novembro, o seu conselheiro para a imprensa enviou uma carta ao Guardian protestando vigorosamente contra uma frase na minha coluna desse mesmo dia. A frase era a seguinte: “No Iraque, as forças norte-americanas e as dos seus anfitriões deixaram de se preocupar em ocultar os seus ataques a alvos civis e estão a eliminar abertamente todos aqueles – médicos, padres, jornalistas – que se atrevem a contar os cadáveres”. A sua maior preocupação dizia respeito à palavra “eliminar”. A carta sugeria que a minha acusação era “desprovida de fundamentos” e pedia ao Guardian para a desmentir ou para apresentar “provas desta acusação extremamente grave”. É muito raro que funcionários da embaixada americana se envolvam abertamente com a imprensa livre de um país estrangeiro e, por isso, tomei esta carta muito a sério. Mas embora concorde em que a acusação é grave, não tenho a menor intenção de a desmentir. Ao invés disso, apresento aqui as provas que pediu.
Em Abril, as forças norte-americanas cercaram Faluja em retaliação pelas horríveis mortes de quatro empregados da Blackwater. A operação foi um fracasso, acabando as tropas americanas por deixar a cidade em poder das forças de resistência. A razão para a retirada foi que o cerco desencadeou revoltas por toda a região, despoletadas pelas notícias de que tinham sido mortos centenas de civis. Estas informações provieram de três fontes principais: 1) Médicos. O USA Today noticiava em 11 de Abril que “As estatísticas e os nomes dos mortos tinham sido recolhidas em quatro das principais clínicas nos arredores da cidade e no principal hospital de Faluja”. 2) Jornalistas da TV árabe. Se, por um lado, foram os médicos a informar o número de mortos, por outro, foram a al-Jazeera e a al-Arabiya que deram um rosto humano a essas estatísticas. Com equipas de operadores de câmaras independentes em Faluja, ambos os canais de televisão exibiram a todo o Iraque e a todo o mundo de língua árabe imagens de mulheres e crianças mutiladas. 3) Clérigos. Os relatos de um grande número de vítimas feitos pelos jornalistas e médicos foram repetidos por clérigos eminentes do Iraque. Muitos deles fizeram prédicas exaltadas, condenando o ataque, o que virou os membros das suas congregações contra as forças americanas e inflamou a revolta que forçou as tropas americanas a retirar. As autoridades americanas negaram que tivessem sido mortos centenas de civis durante o cerco de Abril passado, e atacaram as fontes dessas notícias. Por exemplo, um “oficial superior americano” não identificado, falando ao New York Times no mês passado, rotulou o hospital de Falluja como “um centro de propaganda”. Mas as palavras mais violentas foram reservadas para os canais da TV árabe. Quando lhe pediram para se pronunciar sobre as notícias da al-Jazeera e da al-Arabiya de que tinham sido mortos centenas de civis em Faluja, Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa americano, respondeu que “aquilo que a al-Jazeera anda a fazer é depravado, inexacto e imperdoável...” No mês passado, as tropas americanas voltaram a cercar Faluja – mas desta vez o ataque incluiu uma nova táctica: eliminar os médicos, os jornalistas e os clérigos que haviam atraído a atenção do público para as vítimas civis no ataque anterior.

ELIMINANDO MÉDICOS A primeira operação importante feita pelos marines americanos e pelos soldados iraquianos foi atacar o hospital principal de Falluja, prender médicos e colocar as instalações sob controlo militar. The New York Times noticiou que “o hospital foi escolhido como um primeiro alvo porque os militares americanos consideravam que ele fora a fonte de rumores sobre o grande número de vítimas”, sublinhando que “desta vez, os militares americanos tencionam travar a sua batalha da informação, reagindo ou silenciando o que havia sido uma das mais potentes armas dos rebeldes”. The Los Angeles Times citou um médico a dizer que os soldados “roubaram os telemóveis” no hospital – impedindo os médicos de comunicar com o mundo exterior. Mas este não foi o pior dos ataques aos trabalhadores da saúde. Dois dias antes, uma clínica de emergência crucial foi bombardeada até se transformar em entulho, bem como abastecimentos médicos no dispensário na porta ao lado. O dr. Sami al-Jumaili, que estava a trabalhar na clínica, afirma que as bombas ceifaram as vidas de 15 médicos, quatro enfermeiras e 35 pacientes. The Los Angeles Times relatou que o administrador do hospital geral de Faluja "havia contando a um general americano a localização do centro médico provisório no centro da cidade" antes de este ser alvejado. Quer a clínica tenha sido alvejada expressamente, quer destruída acidentalmente, o efeito foi o mesmo: eliminar muitos médicos de Faluja da zona de guerra. Tal como disse o dr. Jumaili ao Independent no dia 14 de Novembro: “Não há um único cirurgião em Faluja”. Quando a luta avançou para Mosul, utilizou-se uma táctica idêntica: quando entraram na cidade, as forças americanas e iraquianas assumiram de imediato o controlo do hospital de al-Zaharawi.

ELIMINAÇÃO DE JORNALISTAS As imagens do mês passado do cerco a Falluja provieram quase exclusivamente de repórteres contratados pelas tropas americanas. Isto porque os jornalistas árabes que haviam feito a cobertura do cerco de Abril numa perspectiva civil foram efectivamente eliminados. A al-Jazeera não tinha câmaras no terreno porque fora proibida indefinidamente de actuar no Iraque. A al-Arabiya teve de facto um repórter independente em Falluja, Abdel Kader Al-Saadi, mas a 11 de Novembro as forças americanas prenderam-no e mantiveram-no detido enquanto durou o cerco. A detenção de Al-Saadi foi condenada pelos Repórteres Sem Fronteiras e pela Federação Internacional dos Jornalistas. “Não podemos ignorar a possibilidade de ele estar a ser intimidado apenas por tentar fazer o seu trabalho,” declarou a FIJ. Não é a primeira vez que jornalistas no Iraque enfrentam este tipo de intimidação. Quando as forças americanas invadiram Bagdad em Abril de 2003, o Comando Central americano incitou todos os jornalistas independentes a abandonarem a cidade. Alguns insistiram em ficar e pelo menos três deles pagaram com as suas vidas. No dia 8 de Abril, um avião americano bombardeou os escritórios da al-Jazeera em Bagdad, matando o repórter Tareq Ayyoub. A al-Jazeera tem documentação que prova ter ele fornecido às forças americanas as coordenadas da sua localização. No mesmo dia, um tanque americano fez fogo sobre o Hotel Palestina, matando José Couso, do canal Telecinco da TV espanhola, e Taras Protsiuk, da Reuters. Três soldados americanos enfrentam agora um processo crime posto pela família de Couso, a qual alega que as forças americanas sabiam muito bem que os jornalistas se encontravam no Hotel Palestina e cometeram um crime de guerra.

ELIMINAÇÃO DE CLÉRIGOS Tal como foram visados médicos e jornalistas, também o foram muitos dos clérigos que protestaram veementemente contra os assassinatos em Faluja. No dia 11 de Novembro, foi preso o Sheik Mahdi al-Sumaidaei, responsável pela Associação Suprema para Direcção e do partido Daawa (Supreme Association for Guidance and Daawa]. Segundo a Associated Press, “al-Sumaidaei incitou a minoria sunita a desencadear uma campanha de desobediência civil se o governo iraquiano não fizesse parar o ataque a Faluja”. No dia 19 de Novembro, a AP noticiou que as forças americanas e iraquianas assaltaram uma importante mesquita sunita, a Abu Hanifa, em Aadhamiya, matando três pessoas e prendendo outras 40, incluindo o clérigo principal – outro opositor do cerco a Falluja. No mesmo dia, a Fox News noticiou que “as tropas americanas também invadiram uma mesquita sunita em Qaim, perto da fronteira síria”. A notícia descrevia as prisões como sendo “uma retaliação pela oposição à ofensiva contra Falluja”. Também foram presos nas últimas semanas dois clérigos xiitas, relacionados com o dirigente Moqtada al-Sadr; segundo a AP, “ambos haviam protestado contra o ataque a Faluja”. “Nós não contamos corpos”, disse o general Tommy Franks do Comando Central norte-americano. A pergunta é: o que é que acontece às pessoas que insistem em contar os corpos – os médicos que têm de declarar a morte dos seus doentes, os jornalistas que documentam essas perdas, os clérigos que as denunciam? No Iraque, acumulam-se as provas de que essas vozes estão a ser sistematicamente silenciadas por muitos e diversos meios, desde as prisões em massa, até à invasão de hospitais, boicote aos meios de comunicação e ataques físicos bem visíveis e sem explicação.
Sr. Embaixador, creio que o seu governo e os seus anfitriões iraquianos estão a travar duas guerras no Iraque. Uma é contra o povo iraquiano e já custou cerca de 100 000 vidas. A outra é uma guerra contra as testemunhas.

[*] Jornalista, escritora e activista antiglobalização, canadiana. Pesquisa adicional de Aaron Maté
Publicado em The Guardian, 04/Dez/2004. Tradução de Margarida Ferreira.
O original encontra-se em
www.nologo.org

sábado, dezembro 18, 2004

VEJAM ISTO- SEM FALTA!!!!!!!!!!!!!

http://www.freedomunderground.org/memoryhole/pentagon.php#Main

Traidores...

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"NEOLIBERALISMO: é o paradigma político definidor da economia dos nossos tempos, tendo como referência, política e procedimentos que permitem que uns poucos interesses privados controlem o mais possível a vida social, por forma a maximizar o seu lucro pessoal."
Noam Chomsky

Alberto João o Palhaço da Nação

O inimitável presidente do Governo Autónomo da Madeira, vulgo Alberto João, brindou-nos, uma vez mais, com algumas das suas magníficas tiradas, reveladoras não só do seu espírito democrático, mas também da sua inigualável inteligência. Este sujeito que, segundo parece, deve ser inimputável, continua a sua saga de impunidade ao melhor estilo dos representantes de regimes ditatoriais terceiro-mundistas.
Senão vejamos a magnificência destes comentários emitidos durante a sessão do parlamento regional no dia 15 de Nov. passado. Segundo relata uma notícia do jornal Público:


“Durante a sua demorada intervenção inicial, Jardim pôs em causa a capacidade intelectual de deputados da bancada do PS, do PCP e do Bloco de Esquerda para entenderem as suas declarações. Ao apresentar as linhas programáticas da acção governativa na nova legislatura, o presidente madeirense afirmou que "votar no PCP é votar na polícia política e no terrorismo internacional", acusou o PS, "colonialista" e conservador", de ser "a União Nacional da III República", e o BE de "partido das tias de Cascais". Classificou de "incompetentes" os "gurus da economia", alguns do seu partido, que influenciaram a decisão do Presidente da República e reiterou as queixas contra as "corporações da justiça", infiltradas pelo PC", e da "arrogante e inculta" comunicação social, "infiltrada pela esquerda", no continente. Na Madeira, advertiu: "Não vão controlar a comunicação social, ou se for por cima do meu cadáver.".
Para a resolver a situação de "instabilidade e de crise" que o país atravessa, devido ao regime "tão decadente", Jardim defende a constituição de um governo de iniciativa presidencial, chefiado por um "primeiro-ministro que depois não é candidato a coisa nenhuma", cuja "missão é fazer todas as medidas que nenhum partido é capaz de tomar ". As eleições ficariam para mais tarde, "só depois de se pôr o país a funcionar".


Porém, antes destes iluminados comentários, já o parlamento madeirense havia assistido a uma muito dignificante “troca de ideias”, que todavia nos poderá servir de exemplo para uma análise sociológica acerca do calibre da rasteira classe política que nos governa. Pobre país este!


A mesma notícia exemplifica:

“Interrompido por vários àpartes do presidente do governo, Alberto João Jardim, quando interpelava o vice-presidente do governo, Jacinto Serrão lembrou a Jardim que, na véspera, ouvira em silêncio o seu discurso de duas horas e meia, tão longo que, disse, faria "adormecer rinocerontes". A este comentário reagiu energicamente Jaime Ramos que endereçou ao presidente socialista os epítetos de "rinoceronte", "gatuno" e "burro".
O deputado socialista ripostou advertindo Ramos a não entrar pelo "caminho da zoologia". Depois acusou o líder da bancada social-democrata de chegar a "milionário ao fim de dez anos", quando antes era "vendedor de sifões de retretes". "Onde arranjaste o dinheiro?", questionou.”

Mais comentários, para quê?

Maus Costumes

São cada vez mais os países que se estão a fartar de fazer o papel de bobo nesta grande farsa universal

Um pequeno gesto de dignidade nacional provocou um imenso escândalo no início deste ano. Em todo o mundo a imprensa dedicou-lhe títulos de primeira página, como se estivesse a dar conta de algo raríssimo, como: "Homem mordeu cão".
O que aconteceu? O Brasil estava a exigir aos visitantes americanos o mesmo que os Estados Unidos exigem aos visitantes brasileiros: um visto no passaporte e registo na fronteira, incluindo fotografia e impressão digital.
Muitos condenaram este acto de normalidade como uma expressão de perigosa loucura. Quiçá, o mundo não estivesse tão mal acostumado, e as coisas teriam sido vistas de outro modo. Ao fim e ao cabo, o anormal não era que o presidente Lula actuasse assim, senão que fosse o único: o anormal era que os demais aceitassem sem protestar essas condições que Bush impôs a todos os países, com a excepção de uns poucos privilegiados que estão além de qualquer suspeita de terrorismo e maldade.
* * *
Tudo se explicava, obviamente, por causa do 11 de Setembro. Esta tragédia, que o presidente Bush continua a utilizar como um argumento de perpétua impunidade, obriga o seu país a defender-se sem nunca baixar a guarda.
No entanto, como qualquer um sabe, nenhum brasileiro teve nada a ver nada a ver com a queda das Torres Gémeas de Nova York. Pelo contrário, como poucos recordam, o mais grave atentado terrorista de toda a história do Brasil, o golpe de Estado de 1964, contou com a fundamental participação política, económica, militar e jornalística dos Estados Unidos.
Este assunto dos registos dos turistas, que tanta confusão provocou, não é mais do que um caso de justiça retributiva, e seria ridículo confundi-lo com uma tardia vingança histórica. Mas as rotinas da indignidade têm muito mais a ver, na América Latina, com o mau costume da amnésia, de modo que não é de mais recordar que a participação oficial e oficiosa dos Estados Unidos naquele golpe de Estado terrorista foi provada documentavelmente e confessada pelos seus principais actores. E valeria a pena recordar também, que essa revolta não só abriu caminho a uma longa ditadura militar, mas também assassinou e sepultou as reformas sociais que o governo democrático de Jango Goulart estava a levar a cabo para que fosse menos injusto o país más injusto do mundo.
Aquele impulso justiceiro demorou 40 anos a ressuscitar. Nesses 40 anos, quantas crianças brasileiras morreram de fome? O terrorismo que mata de fome não é menos abominável que o que mata por bomba.
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Maus costumes: indignidade, amnésia, resignação. Por medo, custa-nos mudá-los; por preguiça mental, custa-nos imaginarmo-nos sem eles.
Afigura-se-nos inconcebível o revés da trama, a contracara de cada cara. Perguntarmo-nos, por exemplo, o que se teria passado se o Iraque tivesse invadido os Estados Unidos, com o pretexto de que estes possuem armas de destruição maciça? E se a embaixada da Venezuela em Washington tivesse apoiado e aplaudido um golpe de Estado contra George W. Bush, como fez a embaixada dos Estados Unidos em Caracas contra Hugo Chávez? E se o governo de Cuba tivesse organizado 637 tentativas de assassinato contra os presidentes dos Estados Unidos, em resposta às 637 vezes em que tentaram matar Fidel Castro?
O que se passaria se os países do sul do mundo se negassem a aceitar uma só das condições impostas pelo Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, a não ser que estes organismos começassem a impô-las aos Estados Unidos, que são o maior devedor do planeta? E se o sul aplicasse os subsídios e tarifas que os países ricos aplicam em casa e proíbem fora dela? E se…?
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Maus costumes: o fatalismo. Aceitamos o inaceitável como se fosse parte da ordem natural das coisas e como se não houvesse outra ordem possível. O sol arrefece, a liberdade oprime, a integração desintegra: gostemos ou não, não há maneira de evitá-lo. Eleja entre isto e isto. Assim se vende, por exemplo o ALCA.
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Lá, no principio dos tempos, o velho Zeus, o mandão chefe, não se enganou. Entre todos os moradores do Olimpo grego, Hermes era o mais mentiroso, o vigarista que todos enganava, o ladrão que tudo roubava. Zeus, ofereceu-lhe umas sandálias com asitas de ouro e nomeou-o deus do comércio. Foi Hermes, mais tarde chamado Mercúrio, quem engendrou a Organização Mundial de Comércio, o NAFTA, o ALCA e outras criaturas concebidas à sua imagem e semelhança.
O NAFTA, o acordo comercial entre Estados Unidos, Canadá e México, acabava de cumprir dez anos. A mão de Hermes, guiou toda a sua infância passo a passo, Vida e obra do NAFTA, primeira década: recordemos não mais do que um par de episódios reveladores daquilo que nos espera caso o ALCA e esta chamada liberdade de comércio, humilhadora de soberanias, se concretizem e se estendam a todo o espaço americano:
* Em 1996, o governo do Canadá proibiu a venda de "uma neurotoxina perigosa para a saúde humana". Era um aditivo para a gasolina, fabricado pela empresa americana Ethyl. Esse aditivo tóxico, proibido nos Estados Unidos, só se vendia no Canadá. A empresa Ethyl, que há muitos anos se dedica à nobre missão de envenenar os países estrangeiros, reagiu processando o Estado Canadiano, porque a proibição do seu produto, liquidava as suas vendas, danificava a sua reputação e significava “uma expropriação”. Os advogados canadianos, advertiram o governo de que estava perdido: não havia nada a fazer. Com o NAFTA, as empresas mandam. Em meados de 1998, o governo canadiano levantou a proibição, pagou uma indemnização de 13 milhões de dólares à empresa Ethyl e pediu-lhe desculpas.
* Em 1995, outra empresa americana, Metalclad, não pode reabrir um depósito de lixo tóxico no estado mexicano de San Luis Potosí. A população impediu-o, de machados na mão, para que a empresa lixeira não continuasse a envenenar a terra e os lençóis subterrâneos de água. A Metalclad processou o governo do México, por “esse acto de expropriação”. Segundo o estabelecido pelo Tratado de Livre Comercio, no ano de 2001 a empresa recebeu uma indemnização de 17 milhões de dólares.
* * *
A Organização das Nações Unidas nasceu no final da Segunda Guerra Mundial. John Fitzgerald Kennedy e Orson Welles estiveram entre os 2.500 jornalistas que publicaram crónicas do grande acontecimento. A Carta fundacional das Nações Unidas estabeleceu "a igualdade de direitos entre as grandes e as pequenas nações".
Era a grande promessa: a partir da igualdade soberana de todos os seus membros, o novo organismo internacional iria mudar o rumo da história da humanidade. Sessenta anos depois, está à vista. Mudou para pior.
* * *
Mas os maus costumes não são um destino, e são cada vez mais os países que se estão a fartar de representar o papel de bobo nesta grande farsa universal.
Há um ano, Thomas Dawson, porta-voz do Fundo Monetário Internacional, comprovava: "Temos muitos alunos destacados na América Latina". Era a linguagem de sempre. Agora, adverte o presidente argentino Néstor Kirchner: "Já não somos tapetes ".É a nova linguagem.
Nova linguagem, nova atitude. Os nossos países dão-se muito mal com os seus povos e pior ainda com os seus vizinhos, e esta é uma longa e triste história de divórcios. Mas as mais recentes reuniões internacionais - em Cancún e Monterrey- foram sacudidas pelo sopro de ventos que o ar agradece. Depois de tantos anos de solidão, nós os fracos, começamos a entender que separados estamos fritos. Já poucos acreditam, como o presidente uruguaio Jorge Batlle, que todavia podemos aspirar a ser mendigos felizes. Até os mais renitentes se estão a convencer de que neste vasto “humilhadeiro”, onde os poderosos praticam impunemente o proteccionismo comercial, a extorsão financeira e a violência militar, a dignidade ou é partilhada ou não é. Devíamos preocuparmo-nos, digo eu, antes que fiquemos iguais a essas fotografias que nos chegam de Marte.

GALEANO,Eduardo,“MalasCostumbres”, www.jornada.unam.mx ,[ 27 de Janeiro de 2004].

Capitalismo

Capitalism

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Cadilhos e Caudilhos

Ter a tentação de abandonar o Governo porque o chefe do Estado considera que ele está ferido de "falta de credibilidade" é mais ou menos a mesma coisa que ir roubar carteiras para o Metro para provar a sua honestidade.
Em termos emocionais, todos podemos compreender a tentação de Santana Lopes, pois todos já tivemos vontade de deixar cair a meio uma tarefa particularmente dura e ingrata, por cuja execução somos criticados e onde nos sentimos incompreendidos. Em termos técnicos, e para usar o vocabulário específico das ciências políticas, essa tentação dá pela designação de "birra". O que Santana Lopes conseguiu mais uma vez tornar evidente ao país, com fogo-de-artifício e petardos, com fanfarra e sirenes a apitar, foi a sua total falta de qualidades pessoais para estar à frente do barco - qualquer barco - e muito menos para assumir a liderança de um Governo - qualquer Governo. Santana Lopes dá-se mal com o stress, com a responsabilidade, com a disciplina, com o trabalho, com as críticas. E como não tem aqueles grandes objectivos que fazem a persistência dos homens políticos, não vê nenhuma razão para suportar esse stress, essas responsabilidades, essas críticas. Para Santana Lopes, com o seu típico solipsismo, ser primeiro-ministro é apenas uma ocupação, que até pode ser muito gira. Mas se não lhe der prazer já não vê razão para continuar nem mais um dia.
2. De uma coisa Santana Lopes pode ter a certeza: o seu consulado conquistou um lugar na história. Não foi pelas boas razões, mas um lugar na história é melhor que nada. Além da tentação do abandono, este período ficou marcado (apenas para falarmos dos episódios mais recentes) por uma dissolução do Parlamento decidida pelo Presidente da República mas comunicada pelo primeiro-ministro à nação frente às câmaras de televisão; pela mesma dissolução ter sido comunicada a toda a gente menos ao presidente do órgão dissolvido, um lapso que este desculpou com um sentido de responsabilidade institucional digno de nota; e ainda por uma demissão do Governo anunciada numa reunião partidária também às câmaras de televisão 48 horas antes de ter sido comunicada ao Presidente da República. Nem todas as "gaffes" são da responsabilidade de Santana Lopes, mas há algo claramente santanista em todos estes episódios, há algo em todos eles que decorre de um ambiente instilado por este Governo onde reina não só o improviso e a ligeireza mas também a provocação e a falta de urbanidade.
3. Outro fruto da mesma árvore foi o epíteto com que Morais Sarmento quis brindar o Presidente da República na entrevista concedida há dias ao "Diário Económico". Chamar "caudilho" ao Presidente é evidentemente um insulto político, mas que o ministro o avance para em seguida recuar e se refugiar debaixo das saias da etimologia reúne o pior de dois mundos.
A simples escolha da palavra constituiu um ataque político. "A posteriori" Morais Sarmento podia ter decidido substantivá-lo ou retirá-lo, desculpando-se pela violência involuntária de uma escolha de palavras infeliz. Mas mantê-lo dizendo que não está a usar a expressão na sua acepção política e que a palavra não quer dizer o que quer dizer não é dignificante.
Caudilho pode ter querido dizer líder militar (partilha a sua raiz latina com "capitão", por exemplo), mas a evolução semântica do substantivo passa inevitavelmente por Franco (que escolheu a designação para si seguindo o exemplo do Duce e do Führer) e significa um chefe que retira a sua legitimidade não da lei ou do voto mas da força, que é o único intérprete dos desejos do povo, que não partilha o poder, que baseia o seu domínio num culto da personalidade. Um caudilho é um ditador. Se Morais Sarmento quis dizer isso que o diga, que o assuma (por disparatado que seja aplicar a expressão a Sampaio) e que tente justificá-la politicamente. Se não foi isso que quis dizer, nós percebemos. Afinal há tantas palavras que é difícil saber o significado de todas.
MALHEIROS, José Vitor, " Cadilhos e Caudilhos",Público,14 de Dezembro de 2004

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Pedro e Paulo

1. Tal como os apóstolos que lhes são homónimos, será que Pedro e Paulo culminarão o seu testemunho de vida morrendo pela fé em que acreditaram? Parece que não, apesar de esta analogia cristã ser pouco ortodoxa e de o país ter andado suspenso durante quase duas semanas pela resposta definitiva a tão religiosa dúvida. Assim, manda o bom senso que a história não se repita, nem como tragédia nem como farsa, inclusive porque o Jesus destes contemporâneos evangelizadores da direita portuguesa não deu propriamente a vida pela causa em que disse acreditar, preferindo o céu de Bruxelas ao purgatório de Lisboa. Além de que anunciar simultaneamente a morte e a ressurreição, e nos precisos moldes em que Pedro e Paulo o fizeram, redunda num contra-senso teológico quando não é possível garantir aos crentes incautos que haverá certamente vida para além da morte. E o mais provável é que não haja. Depende da fé.
Poderia, de outro modo, referir-me a um casamento de conveniência que acabou por culminar num divórcio também de conveniência, ao mesmo tempo que se proclamou inusitadamente um renovado hipotético casamento. Nesta perspectiva mais laica do problema, os promitentes nubentes recém-divorciados ficarão entretanto a viver numa espécie de união de facto. Para além de ser uma coisa estranha, que na vida não costuma ser assim, o problema maior é que determinados factos não suportam determinadas uniões - como já toda a gente percebeu e as eleições deverão confirmar. Até Pedro e Paulo sabem disso. Sobretudo Paulo.

2. Pedro Santana Lopes é o paradigma de uma nova classe de dirigentes políticos cuja afirmação pública resulta menos da competência específica para o desempenho de cargos de relevo do que da sua notoriedade. Nos tempos que correm - e esse não é infelizmente um exclusivo português, sendo porventura um problema central das democracias contemporâneas - mais importante do que ser reconhecido é ser-se conhecido, não importa como nem através de que meios. Sejam eles, como no caso em apreço, as revistas populares de grande difusão, os "reality show" televisivos, as ligações ao universo do futebol profissional, ou os momentos circenses da actividade partidária.

3. Anda por aí uma azáfama que ainda não chegou às páginas dos jornais. Sobretudo nos interstícios dos dois maiores partidos, cozinham-se as manobras tácticas que garantam desde já um lugar potencialmente elegível nas listas de deputados. Com um grau de certeza quase absoluta, podemos antever que ainda não será desta que o Parlamento português fugirá à sua habitual configuração: apenas dois ou três em cada dez deputados não resultarão de carreiras proficuamente construídas, em regime de quase exclusividade, nos aparelhos das estruturas partidárias respectivas.
COSTA, Luís, "Pedro e Paulo", Público, 16 de Dezembro de 2004.

Memórias...

saddam-rumsfeld

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Educando pelo Exemplo

A escola do mundo às avessas é a mais democrática das instituições educativas. Não exige exame de admissão, não cobra matrícula e ministra os seus cursos gratuitamente, a todos e em qualquer lugar, assim na terra como no céu: por alguma razão é filha do sistema que conquistou, pela primeira vez em toda a história da Humanidade, o poder universal.
Na escola do mundo às avessas, o chumbo aprende a flutuar e a cortiça a afundar-se. As víboras aprendem a voar e as nuvens aprendem a rastejar pelos caminhos






Os modelos do êxito


O mundo às avessas premeia às avessas: despreza a honestidade, pune o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos e alimenta o canibalismo. Os seus mestres caluniam a natureza: a injustiça, dizem, é a lei natural. Milton Friedman, um dos membros mais prestigiados do corpo docente, fala da «taxa natural de desemprego». Por lei natural, provam Richard Herrnstein e Charles Murray, os negros encontram-se nos degraus mais baixos da escala social. Para explicar o êxito dos seus negócios, John D. Rockfeller costumava dizer que a natureza recompensa os mais aptos e castiga os inúteis; e mais de um século depois, muitos donos do mundo continuam a acreditar que Charles Darwin escreveu os seus livros para anunciar a glória deles.
Sobrevivência dos mais aptos? A aptidão mais útil para abrir caminho e sobreviver, o killing instinct, o instinto assassino, é virtude humana quando serve para que as grandes empresas digiram as pequenas e para que os países fortes devorem os países fracos, mas é prova de bestialidade quando qualquer pobre tipo sem trabalho sai à procura de comida com uma faca na mão. Os doentes da patologia anti-social, loucura e perigo que cada pobre contém, inspiram-se nos modelos de boa saúde do êxito social. Os delinquentes da treta aprendem o que sabem levantando o olhar, a partir de baixo em direcção aos cumes; estudam o exemplo dos triunfadores e, na medida do possível, fazem o que podem para lhes imitarem os méritos. Mas os «lixados» estarão sempre lixados, como dizia Emílio Azcárraga, que foi amo e senhor da televisão mexicana. As possibilidades de um banqueiro que esvazia um banco possa desfrutar em paz, dos frutos do seu trabalho são directamente proporcionais às possibilidades de que um ladrão que rouba um banco vá parar à prisão ou ao cemitério.
Quando um delinquente mata por alguma dívida por pagar, a execução chama-se ajuste de contas; chama-se plano de ajustamento a execução de um país endividado, quando a tecnocracia internacional decide liquidá-lo. A malfeitoria financeira sequestra os países e limpa-os se não pagarem o resgate; quando comparados, qualquer bandido se revela mais inofensivo do que o Drácula debaixo do sol. A economia mundial é a mais eficiente expressão do crime organizado. Os organismos internacionais que controlam a moeda, o comércio e o crédito praticam o terrorismo contra os países pobres, e contra todos os pobres de todos os países, com uma frieza profissional e uma impunidade que humilham o melhor dos bombistas.
A arte de enganar o próximo, que os vigaristas profissionais praticam caçando desprevenidos pelas ruas, chega a ser sublime quando alguns políticos exercitam o seu talento. Nos subúrbios do mundo, os chefes de Estado vendem os restos de colecção e os retalhos dos seus países a preço de liquidação de final de temporada, tal como nos subúrbios das cidades os delinquentes vendem, a preço vil, o produto dos seus assaltos.
Os pistoleiros que são contratados para matar realizam, em pequena escala o mesmo serviço que cumprem, em grande escala, os generais condecorados por crimes que são elevados à categoria de glórias militares. Os assaltantes, à coca nas esquinas, desferem golpes que são a versão artesanal dos golpes de sorte assestados pelos grandes especuladores que espoliam multidões a golpes de computador. Os violadores que mais ferozmente violam a natureza e os direitos humanos nunca são presos. Têm as chaves das cadeias. No mundo tal como está, o mundo às avessas, os países que custeiam a paz universal são aqueles que mais armas fabricam e os que mais armas vendem aos restantes países; os bancos mais prestigiados são os que mais narcodólares lavam e os que mais dinheiro roubado guardam; as indústrias mais florescentes são as que mais envenenam o planeta; e a salvação do meio ambiente é o mais brilhante negócio das empresas que o aniquilam. São dignos de impunidade e felicitações os que matam mais gente em menos tempo, os que ganham dinheiro com menos trabalho e os que destroem a maior quantidade de Natureza com menos custos.
Caminhar é um perigo e respirar é uma façanha nas grandes cidades do mundo às avessas. Quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem pela ansiedade de ter as coisas que não têm e outros não dormem pelo pânico de perderem as coisas que têm. O mundo às avessas treina-nos para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, reduz-nos à solidão e consola-nos com drogas químicas e amigos cibernéticos. Estamos condenados a morrer de tédio, se uma bala perdida não nos abreviar a existência.
Será esta liberdade, a liberdade de escolher entre estas ameaças de desgraça, a nossa única liberdade possível? O mundo ás avessas ensina-nos a padecer a realidade em vez de a mudar, a esquecer o passado em vez de o ouvir e a aceitar o futuro em vez de o imaginar: assim age o crime e assim o recomenda. Na sua escola, a escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem medalha que não tenha reverso, nem tempestade que não traga bonança, nem desânimo que não procure ânimo. Também não há escola que não encontre a sua contra-escola.


GALEANO, Eduardo, De Pernas para o ar, Lisboa, Editorial Caminho,2002.

Um Submarino ao Fundo

De vez em quando Alberto João Jardim vem à televisão e dá lições de democracia. Ninguém acredita, mas ele dá. Explica como a democracia se faz, quais as regras, o modo como se deve exercer, a forma como deve ser concebida. Jardim não tem dúvidas, sabe o que é a democracia, e há anos que consegue mostrar como na Madeira a democracia existe em todo o lado. Basta fazer o que ele diz, pensar como ele pensa, fazer as festas democráticas que ele faz, proferir os discursos que profere, fechar os jornais que ele acha que não são democráticos, afastar as pessoas que não correspondem aos seus ideais de democracia, e a democracia está assegurada.
Por vezes pasmamos com tanto descaramento, com a forma absolutamente despudorada como Alberto João Jardim nos diz que a democracia se concretiza. Mas é puro engano. Ele é que sabe. E tem um argumento de peso. Se o povo continua a dar-lhe a vitória, se os votos continuam a aparecer, se as urnas dizem sempre a mesma coisa, é porque o povo está com Alberto João Jardim, e o povo é o Alberto João e o Alberto João é a democracia. Raciocínios destes são puros como a água. As oposições deviam ser eliminadas (ou envenenadas, como na Ucrânia) porque se são apenas oposições, e não maioria, então é porque não têm o povo com elas e por isso são antidemocráticas.
Tão límpidas concepções políticas deviam ser explicadas a todos os portugueses. Por vez Alberto João tem ganas de vir por aí abaixo para pôr as coisas na ordem. Portugal está dominado por jornalistas corruptos, políticos corruptos, oposições (imaginem!), gente que não pensa como o Alberto João, e era preciso mudar o sistema, pôr esta choldra na ordem, impor pela força a verdadeira democracia.
Calculem que há dias o ex-comandante da Zona Marítima, tendo abandonado as suas funções, acabou por explicar qual a concepção democrática de Alberto João. E é elucidativo. Segundo o comandante Figueiredo Robles, ele, o ex-comandante, foi alvo de "pródigos insultos" que "só não abalaram a minha família e meus amigos porque estes conheciam os factos e, mais do que isso, estavam esclarecidos sobre a personalidade de quem as proferia". Tudo democrático, portanto. Foi tratado de "indisciplinado", "traumatizado", "desrespeitador", "colonialista" e "militar de Abril". Diz Robles Figueiredo que esta situação revelar-se-ia muito mais grave "se eu quisesse também referir os impropérios emitidos por alguns dos seus correligionários". E diz no final da carta que enviou: "Sr. dr. Jardim. Por muito que lhe custe, ficou evidente que a cultura do medo não me envolveu nos seus braços; contudo, curvo-me respeitosamente, isso sim, perante aqueles que, vivendo o quotidiano nessa região, ousam fazer da sua verticalidade um hino à coragem e à esperança."
Concluindo, a partir dos fragmentos citados nesta carta: Alberto João Jardim é um modelo de democracia. Quem quiser aprender que vá para a Madeira. As lições são gratuitas. Ouvindo e vendo a personagem na televisão, nós já desconfiávamos de que nem tudo batia certo. Tivemos agora a confirmação.
COELHO, Eduardo Prado,"Um Submarino ao Fundo", Público, 14 de Dezembro de 2004.

sábado, dezembro 11, 2004


sexta-feira, dezembro 10, 2004

Se liga aí

Se liga aí, se liga lá, se liga então!
Se legalize nessa comunicação.
Se liga aí, se liga lá, se liga então!

A gente pensa que vive num lugar onde se fala o que pensa.
Mas eu não conheço esse lugar.
Eu não conheço esse lugar!
A gente pensa que é livre pra falar tudo que pensa mas a gente sempre pensa um pouco antes de falar!

Se liga aí, se liga lá, se liga então!
Se legalize nessa comunicação.
Se liga aí, se liga lá, se liga então!
Se legalize a liberdade de expressão!
Se liga aí, se liga lá, se liga então!
Se legalize nessa comunicação.
Se liga aí, se liga lá, se liga então!
Se legalize a opção!

Pensa! O pensamento tem poder.
Mas não adianta só pensar.
Você também tem que dizer!
Diz!Porque as palavras têm poder.
Mas não adianta só dizer.Você também tem que fazer!
Faz!Porque você só vai saber se o final vai ser feliz depois que tudo acontecer.
E depois a gente pensa.
E depois a gente diz.
E depois a gente faz... o que tiver que fazer!O que tiver que fazer!

Refrão

Deixe ele viver em paz.
Cada um sabe o que faz.
Deixa o homem ter marido.
Deixa a mina ter mulher.
Deixa ela viver em pé.
Cada um sabe o que quer
O que é que tem que tem demais cada um ser o que é?
Deixa ele chorar em paz.
Cada um sabe o que fez.
Deixa o tempo dar um tempo.
Cada coisa de uma vez.
Deixa ele sorrir depois.
Deixa ela sorrir também.
O que é que tem que tem demais cada um ser dois ou três?

Refrão

Diz o que cê quer dizer, fala o que cê quer falar, faz o que cê quer fazer, pensa o que cê quer pensar!
Fala o que cê quer falar, diz o que cê quer dizer, pensa o que cê quer pensar, faz o que cê quer fazer!

Refrão

Liberdade relativa não é liberdade.
Liberdade atrás da grade não é positiva.
Liberdade negativa é negar a verdade.
Liberdade de verdade é vida, viva, viva!
Viva, viva, viva, viva!
Viva, viva, viva!
Live, live, live, live!Live, live, live!
Vida, vida, vida, vida!
Vida, vida, vida!
Livre, livre, livre, livre!
Livre, livre, livre!!


PENSADOR, Gabriel,"Se Liga aí", Seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo,2001

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Como a memória se costuma caracterizar por ser, nalguns casos, uma faculdade que padece da enfermidade de curta duração, convém que de quando em vez façamos por a reavivar. Aqui vai então uma pequena amostra daquilo que se pode apregoar durante a época da «caça ao voto» e que, após esta, se transforma em letra-morta. Sucede que, esta doença crónica costuma ser apelidada regularmente de HIPOCRISIA.
Esta prosa que se segue, foi proferida durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2002 e como tal, anterior à formação da coligação governamental PSD-PP que acaba de ficar defunta.
«Ainda os espanhóis andavam a bater-se com os mouros em Granada, já os portugueses andavam à procura da Índia»
Paulo Portas sobre o apoio de Aznar ao PSD
«Ou vês Ferro, ou vês Durão; e se não gostas, não vês televisão»
Paulo Portas sobre a cobertura da campanha nos «media»
«Num país onde se pagam pensões de 38 contos, o crime anda à solta»
Paulo Portas, em Mirandela
«Nós não somos liberais, somos democratas-cristãos; temos de sair do buraco do socialismo sem nos metermos no túnel do liberalismo puro e duro»
Paulo Portas, idem.
Pode ler-se ainda no Expresso:
“A tónica, contudo, continua a ser o incansável ataque à maioria absoluta do PSD e às «clientelas famintas que querem ocupar o Estado à conta do contribuinte».
«Maioria absoluta para vender a Caixa Geral de Depósitos aos espanhóis? Para congelar os salários da função pública? Para promover a subida do IVA e dar cabo da competitividade das empresas portuguesas? Vão trabalhar!», proclamou em Mirandela, com uma violência verbal a milhas da contenção do debate televisivo”.
idem, ibidem.
in: Expresso, 2 de Março de 2002.

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Lapidar, elucidativa,reveladora...

Eis um magnífico exemplo da forma de pensar de alguns senhores cá do burgo, e em particular de um ocupante de um alto cargo político da Nação, conhecido pelos seus profundos princípios democrata-cristãos, que tanto insiste em realçar nas suas intervenções mediático-populistas. Pensamento este, revelador de um elementar respeito pelo direito à autodeterminação dos povos e em última análise pelos direitos humanos.
Pois é… como ensina a sabedoria popular: «mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo».
Parece-me que esta figurinha gostaria que se processasse um regresso ao tempo da Outra Senhora…



“Eu tenho orgulho na história de Portugal, por que hão-de impor [na Constituição] que o Estado deve ser anticolonialista?”

Paulo Portas, Público, 1 de Dezembro de 2004.

Regresso ao...passado?

“(…) Não há nenhuma razão, bem entendido, para que os novos totalitarismos se pareçam com os antigos. O governo por meio de cacetes e de pelotões de execução, de fomes artificiais, de detenções e deportações em massa não é somente desumano (parece que isso não inquieta muitas pessoas, actualmente); é – pode demonstrar-se – ineficaz. E numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo. Um Estado totalitário verdadeiramente «eficiente» será aquele em que o todo - poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores terá o controle de uma população de escravos que será inútil constranger, pois todos eles terão amor à sua servidão. Fazer que eles a amem, tal será a tarefa, atribuída nos Estados totalitários de hoje aos ministérios de propaganda, aos redactores – chefes dos jornais e aos mestres – escolas.
(…) Os maiores triunfos, em matéria de de propaganda, foram conseguidos não com fazer qualquer coisa, mas com a abstenção de a fazer. Grande é a verdade, mas maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio a respeito da verdade.


Vendo bem, parece que a Utopia está mais próxima de nós do que se poderia imaginar há apenas quinze anos. Nessa época coloquei-a à distância futura de seiscentos anos. Hoje parece praticamente possível que esse horror se abata sobre nós dentro de um século. Isto se nos abstivermos, até lá, de nos fazermos explodir em bocadinhos. Na verdade, a menos que nos decidamos a descentralizar e utilizar a ciência aplicada não como o fim de reduzir os seres humanos a simples instrumentos, mas como meio de produzir uma raça de indivíduos livres, apenas podemos escolher entre duas soluções: ou um certo número de totalitarismos nacionais, militarizados, tendo como base o terror da bomba atómica e como consequência a destruição da civilização (ou, se a guerra for limitada , a perpetuação do militarismo), ou um único totalitarismo internacional, suscitado pelo caos social resultante do rápido progresso técnico em geral e da revolução atómica em particular, desenvolvendo-se, sob pressão da eficiência e da estabilidade, no sentido da tirania-providência da Utopia. È pagar para escolher.”

HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, 1932.

Lies


Lies
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terça-feira, dezembro 07, 2004

"Com voz ou sem ela, o povo pode sempre ser levado a submeter-se à vontade dos dirigentes. É fácil. Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhe que está a ser atacado, e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo e por exporem o país ao perigo".
Reichsmarschal Hermann Goering, comandante da Força Aérea Nazi (Luftwaffe), nos Julgamentos de Nuremberg. in: www.resistir.info

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Bush II

A reeleição, no passado dia 2 de Novembro, de George W. Bush para a presidência dos Estados Unidos, constitui uma grave afronta moral infligida ao espírito da democracia americana, a mais antiga do mundo e, enquanto tal, referência primordial. Claro que, desta vez, tecnicamente não há nada a objectar. Ninguém pode discutir o carácter legítimo do escrutínio.
Os votantes exerceram o seu direito elegendo em função do seu parecer(1). Não é por isso que a reeleição se torna menos perturbadora e inclusivamente chocante. E confirma que a democracia – todavia, o menos imperfeito dos regimes políticos – não está protegida contra opções que possam levar ao poder perigosos demagogos

Com efeito, é preocupante que Bush, conhecido pelo seu fundamentalismo religioso, pela sua mediocridade intelectual e pela sua incultura, tenha sido o candidato mais votado da história eleitoral americana.
Tanto mais quando enganou o seu povo e mentiu ao Congresso para conseguir autorização para desencadear uma “guerra preventiva” (não autorizada pela ONU) e invadir o Iraque; que alentou um uso desproporcionado da força que provocou a morte a milhares de civis iraquianos inocentes(2); que ignorou a “ordem executiva” de 1976 do presidente Gerald Ford (que continua vigente e proíbe aos serviços secretos o assassinato de dirigentes estrangeiros) e ordenou a execução de supostos “terroristas”(3); que violou as Convenções de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros de guerra; que permitiu a prática de tortura na cadeia de Abu Grahib e noutros centros secretos de detenção; e que despertou o espírito do macartismo que consiste em considerar culpado o cidadão suspeito de possuir vínculos com uma organização inimiga.
Com um tão sinistro historial, outro dirigente teria sido declarado persona non grata e excluído do mundo civilizado. Não aconteceu isso com George W. Bush, quem por acréscimo e como presidente da única superpotência mundial, ocupa o lugar central do dispositivo político internacional.
O seu segundo mandato anuncia-se como uma continuação do anterior. As duas primeiras designações de ministros confirmam que Bush interpreta o seu triunfo eleitoral como um plebiscito para a sua política.
Assim, por exemplo a designação de Alberto Gonzales para o Ministério da Justiça constitui um desaire para aqueles que se opõem às torturas de prisioneiros acusados de terrorismo. Assessor jurídico do presidente, Gonzales é autor de disposições legais que permitiram iludir as Convenções de Genebra e classificar como “ combatentes inimigos” os prisioneiros de guerra do Afeganistão e do Iraque, e instaurar a cadeia de Guantánamo.
Contrariando as leis dos Estados Unidos e os tratados internacionais, Gonzales não vacilou ao suspender a proibição de exercer “pressões físicas” sobre esses prisioneiros com o pretexto de que “na condução da guerra, a autoridade do presidente é total”(4).
E quanto à designação de Condoleezza Rice no Departamento de Estado, como não ver nela uma reivindicação do unilateralismo puro e duro preconizado pelos republicanos autoritários que rodeiam o presidente e que as novas ameaças contra o Irão não fazem mais do que confirmar?
No entanto, a incapacidade das forças armadas para se imporem no Iraque contra os insurrectos, demonstra os limites da ferramenta militar. Uma constatação que se pode fazer igualmente em relação a Israel do general Ariel Sharon, principal aliado de Bush no Médio Oriente, no momento do desaparecimento de Arafat.
O Primeiro Ministro israelita constata que a capacidade de sofrimento dos palestinianos continua a ser superior á faculdade de provocar danos do seu exército. Saberá tirar as consequências?
Acabará também Bush por admitir que os aspectos negativos da mundialização (pobreza agravada dos pobres, injustiças planetárias, rivalidades regionais, instabilidade climática, etc.) podem degenerar em enfrentamentos se não se lhes opõe uma concertação multilateral? E que uma potência não pode pretender impôr a lei por si só?
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NOTAS:
(1) Parecer fortemente condicionado pelo marketing político e propaganda mediática. Veja-se Outfoxed (2004), o documentário de Robert Greenwald sobre a manipulação da informação nos Estados Unidos a favor do presidente Bush. (2) De acordo com a associação Iraq Body Count (www.iraqbodycount.net) a quantidade de civis mortos devido à intervenção militar no Iraque teria superado a 21 de Novembro de 2004 os 14.454. Mas segundo a revista médica britânica The Lancet de Novembro de 2004 a quantidade de civis iraquianos mortos por causas directa ou indirectamente ligadas com a invasão dos Estados Unidos chegaria aos 100.000… (3) Veja-se Seymour Hersh, Obediência devida: do 11-S às torturas de Abu Ghraib, Aguilar, S.A. das Ediciones-Grupo Santillana, Madrid 2004. (4) El País, Madrid, 11 de Novembro de 2004.

RAMONET, Ignacio, “Bush II”, Cubadebate, 3 de Dezembro de 2004.

domingo, dezembro 05, 2004

Wanted

wanted

Nas Américas...

"Nas Américas, e também na Europa, a polícia caça estereótipos, culpados do delito de porte de cara. Cada suspeito não branco confirma a regra escrita, com tinta invisível, nas profundezas da consciência colectiva :o crime é negro, ou castanho, ou pelo menos amarelo. "
GALEANO, Eduardo, De pernas para o ar, Lisboa, Editorial Caminho, 2002.

Mais do mesmo?

(...)Depois de Condolezza Rice substituir Colin Powell, sabemos que Alberto González irá substituir John Ashcroft como procurador-geral. É caso para dizer que dificilmente se poderia ir mais perigosamente baixo...
Alberto González foi o conselheiro legal de George Bush quando este foi governador do Estado do Texas. Nos casos de pedido de clemência de condenados à morte, González preparou 57 memorandos confidenciais, revelados na revista "Atlantic Monthly" de Julho/Agosto de 2003, que apontam para sistemáticas omissões de factos relevantes para o governador poder apreciar e decidir os pedidos de clemência.
É conveniente lembrar que, durante os seis anos em que George Bush foi governador do Texas, foram executados 150 homens e duas mulheres, um verdadeiro recorde. Só uma vez, Bush deferiu um pedido de clemência.
Os memorandos de González entregues a George Bush no dia da execução, com uma pequena conversa, eram curtos e, nos dizeres de Alan Berlow na "Atlantic Monthly", assumiam um tom "persecutório", baseavam-se na ideia de que, se os tribunais de recurso tinham mantido a condenação, não haveria motivos para não se cumprir a pena de morte.
Estes memorandos confidenciais, que eram a principal fonte de informação de Bush para decidir da vida ou da morte dos condenados, omitiram em muitos casos factos extremamente relevantes, tais como defensores oficiosos incapazes ou provas essenciais em defesa dos condenados não consideradas.
Para Alan Berlow, a gravidade da decisão sobre a vida ou a morte de um homem não se pode satisfazer com um curto memorando e uma conversa de 30 minutos no próprio dia da execução. González nos seus memorandos e Bush nas suas decisões esqueceram-se sistematicamente que a justiça não só pode errar, como erra muitas vezes...
Mas Alberto González não tem só este pouco simpático passado. Foi ele quem definiu o tratamento jurídico dos prisioneiros da guerra ao terrorismo da Administração Bush: não-cidadãos, sem acesso às Convenções de Genebra nem aos tribunais norte-americanos. Defendeu junto do Presidente norte-americano o desrespeito das Convenções de Genebra que considera obsoletas, nomeadamente quanto ao interrogatório de prisioneiros de guerra, face ao terrorismo...
Mas em Junho o Supremo Tribunal norte-americano explicou-lhe pacientemente que o facto de haver a guerra ao terrorismo e haver um Patriot Act não queria dizer que a Administração podia fazer tudo: "Já há muito que tornámos claro que a situação de guerra não é um cheque em branco para o Presidente quando estão em causa os direitos dos cidadãos."
Mas González, para além de ter criado e defendido o estatuto ajurídico dos não-cidadãos detidos em Guantanamo, também é apontado como responsável pela flexibilização do entendimento dominante nas forças armadas norte-americanas quanto ao conceito da tortura e da sua aplicação, de forma a permitir interrogatórios mais agressivos dos prisioneiros.
Para Nat Hentoff, no "Village Voice" do passado dia 29, se "alguma vez houver uma investigação honesta sobre quem são os últimos responsáveis do recurso à tortura nos interrogatórios no campo prisional de Guantanamo e dos acontecimentos de Abu Ghraib, Alberto González corre o risco de se sentar no banco dos réus, ao lado de Donald Rumsfeld e alguns conselheiros do secretário de Estado da Defesa".(...).
TEIXEIRA DA MOTA, Francisco, "Vítimas + EUA", Público, 3 de Dezembro de 2004.

quinta-feira, dezembro 02, 2004



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